Entrevista com a psicóloga Glória Santiago
Em alusão ao Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Comércio, conversamos com a psicóloga Glória Santiago sobre o papel da Psicologia no enfrentamento aos impactos subjetivos do racismo e outras formas de violência. Glória é doutoranda em Psicologia na linha Cultura e Relações Humanas e atua em questões envolvendo políticas migratórias para refugiados africanos no Brasil, com interesse pelos temas migração, políticas migratórias e interculturalidade.
A data de 25 de março propõe uma reflexão sobre a escravidão e o comércio transatlântico de escravos, sendo esta última uma prática que durou cerca de 400 anos e fez, segundo estimativa da Organização das Nações Unidas (ONU), mais de 15 milhões de vítimas diretas, com reflexos sobre populações em diversas partes do globo, inclusive no Brasil. É comum que sejam lembrados os aspectos econômicos e sociais da escravidão, mas pouco se fala sobre os impactos subjetivos desse contexto. Que contribuições a Psicologia apresenta nesse sentido?
É notório o valor da representatividade sociopolítica do Dia Internacional em Memória das Vítimas da Escravidão e do Comércio Transatlântico de Escravos, principalmente, às gerações que sofreram os efeitos da escravidão transatlântica (racismo, ausência de direitos básicos, etc.). Por outro lado, só podemos falar numa “real representatividade” quando essas memórias são ouvidas. Não basta apenas falar em reparação histórica, se não conseguimos entender a dimensão simbólica dos efeitos do período da escravidão na América e que interfere na vida cotidiana de muitos sujeitos que se sentem prejudicados por essa história que foi silenciada pelo discurso do colonizador. A história da escravidão nas Américas não foi escrita ou contada pelas gerações que sentiram as consequências desse período. É uma história contada por pessoas que foram beneficiadas pelo comercio transatlântico, mesmo que de forma indireta. Vamos pensar no caso da história do Brasil colonial, muitas gerações ouviram de seus professores de história que os bandeirantes foram os grandes heróis da nação, ou até mesmo que a grande heroína da abolição da escravatura no Brasil foi a Princesa Isabel. Nesse sentido, eu acredito que a psicologia pode contribuir para o desvelamento dessas memórias e propiciar um espaço à escuta qualificada. Além do benefício individual das narrativas de memória, há também o ganho político e social, indivíduos que conseguem expor suas memórias e conflitos, tornam-se pessoas menos revoltadas e podem contribuir para a manutenção da paz social.
Os prejuízos humanos e sociais da escravidão são sentidos ainda hoje por parte significativa da população mundial. No Brasil, algumas políticas têm sido implementadas no sentido de afirmação da diversidade. Outras propõem a redução de desigualdades históricas. Como você avalia as políticas públicas no País nesse sentido? Poderíamos falar em um avanço nos últimos anos?
As ações afirmativas representam um grande passo à implementação de políticas públicas, além da reparação histórica, o foco das ações afirmativas é a prevenção de práticas discriminatórias no que tange as desigualdades sociais e econômicas da população afrodescendente. As políticas de cota e de transferência de renda possibilitaram aos indivíduos que sofrem com a discriminação racial e de classe, o acesso a garantia de direitos básicos (saúde. educação, moradia e trabalho), previsto na Constituição para todos os cidadãos brasileiros. Entretanto, são vitórias que não podem ser esquecidas ou absorvidas por políticas universalistas. Ainda precisamos avançar na efetivação de algumas políticas e leis com foco nas ações afirmativas. Como é o caso da Lei 10.639/03 que torna obrigatório o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas escolas de ensino fundamental e médio, apesar de modificar a lei de diretrizes e bases do ensino curricular brasileiro, a prática nos mostra que ainda precisamos avançar. Os professores não têm a formação adequada para o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira, a própria sociedade civil não consegue entender a importância dessa ação, que envolve elementos importantes para a preservação da memória material e imaterial da cultura africana e afro-brasileira, algo importante para o combate e prevenção de práticas discriminatórias.
Qual a importância do envolvimento do profissional de Psicologia com esse tema no que se refere à sua atuação profissional?
No mundo contemporâneo, a atuação do psicólogo não é restrita ao espaço acadêmico ou ao setting clínico, é um profissional que está inserido em diferentes organizações sociais da esfera pública e também da esfera privada, com poder de articulação nesses espaços, envolvendo diferentes questões de cunho sociopolítico, como é o caso da discriminação racial, que afeta milhões de pessoas no mundo e no Brasil. No próprio setting clínico, a questão racial pode aparecer como uma questão que gera sofrimento e podendo afetar a saúde mental desses sujeitos, de forma consciente ou inconsciente. Portanto, o profissional de psicologia deve dispensar atenção especial às questões sociais que interferem nos processos de subjetivação dos indivíduos. Além disso, a resolução do CFP 018/2002 estabelece normas de atuação para psicólogos em relação ao preconceito e a discriminação racial, o que demonstra a importância deste assunto à prática do psicólogo.