Em 24 de janeiro, o Brasil celebra o Dia Nacional do Aposentado, data criada em homenagem à instituição da primeira lei brasileira destinada à previdência social, em 1923: a Lei Eloy Chaves. Em alusão à data, convidamos a psicóloga Jacqueline Ferraz para uma entrevista na qual abordamos o tema aposentadoria sob a perspectiva de atuação do profissional de Psicologia no contexto das organizações de trabalho. Jacqueline Ferraz é graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia/MG, mestre em Psicologia do Desenvolvimento Humano no Contexto Sociocultural pela Universidade de Brasília (UnB) e especialista em Gestão de Pessoas pelo Centro Universitário UDF. Atualmente é psicóloga da Subsecretaria de Segurança e Saúde no Trabalho do Governo de Brasília, vinculada à Secretaria de Estado de Planejamento, Orçamento e Gestão. Coordena o Programa de Orientação para Aposentadoria do Governo de Brasília e é autora do livro “Meu Tempo, Seu Tempo”: possibilidades de coeducação no relacionamento entre avós e netos.
1) A aposentadoria é um momento de transição importante e que envolve não somente mudanças na rotina profissional, mas também tem reflexos sobre expectativas pessoais, contexto familiar e relações sociais, entre outros aspectos da vida humana. É possível se preparar para viver essa etapa?
A aposentadoria consiste em uma fase de transição significativa sim, com a presença de importantes estressores psicossociais que afetam diretamente as variadas dimensões da vida, exigindo do trabalhador o desenvolvimento de recursos emocionais, cognitivos, sociais e financeiros para experimentar esse momento com saúde integral e qualidade de vida.
A literatura sobre o tema nos alerta que, quando não há planejamento, a vivência da aposentadoria pode ser marcada por ansiedade, angústia, tristeza, isolamento social, dificuldades financeiras, perda do sentido de vida, conflitos conjugais, podendo culminar em processos de adoecimento tanto físico quanto mental.
Considerando isso, é fundamental que o preparo para essa etapa da vida pessoal e profissional seja um tema presente ao longo do curso de vida, pois educar-se para a aposentadoria é educar-se para a vida, já que nos aposentamos como vivemos e como trabalhamos. Vale ressaltar que a aposentadoria é um fenômeno de caráter heterogêneo que se dá de distintas formas, conforme as condições pessoais, socioculturais, históricas e econômicas de cada trabalhador.
É possível e necessário se preparar e se organizar com antecedência para que estratégias de enfrentamento dos estressores psicossociais possam ser desenvolvidas, favorecendo o desligamento laboral com consciência, responsabilidade e compromisso com a vida. Afinal de contas, há vida na pós-aposentadoria.
Há dois tipos principais de preparação: a psicossocial e a de caráter administrativo/previdenciário. A primeira envolve a identificação e o reconhecimento dos aspectos psicossociais que envolvem o processo de aposentar-se, como por exemplo a inclusão da família na tomada de decisão pela aposentadoria, a situação financeira pessoal e familiar, o papel e o significado do trabalho na perspectiva subjetiva, entre outros. Na preparação administrativa/previdenciária, há a preocupação em conhecer os protocolos da instituição de trabalho para requerer a aposentadoria, assim como quais são as regras e leis previdenciárias que regem, naquele momento, seu desligamento do trabalho.
Nesse contexto, compreende-se que a educação para aposentadoria consiste em um processo com responsabilidades compartilhadas, no qual cabe à organização de trabalho promover ações de orientação sobre aspectos psicossociais relacionados a essa fase, com propostas de intervenção que possam colaborar para otimização dos fatores de proteção essenciais para uma aposentadoria saudável. Estudos apontam como principais fatores que contribuem para uma adaptação saudável à aposentadoria o planejamento e cuidados com a saúde pessoal e familiar, uma rede social que ofereça suporte afetivo e instrumental, investimento financeiro, o próprio planejamento para desligar-se das atividades laborais é tratado como elemento protetivo, etc.
E, claro, é indispensável a disponibilização de informações administrativas e previdenciárias em vigor para que os trabalhadores possam se planejar adequadamente para o pós-carreira.
É responsabilidade ética, social e legal das organizações de trabalho, sejam públicas ou privadas, proporcionar aos seus trabalhadores ações de preparo para a aposentadoria, preferencialmente sistematizadas em formato de programa, compondo uma política institucional de valorização das diferentes gerações de trabalhadores que as constituem. É necessário que o foco não se restrinja às questões legais e previdenciárias, mas que também alcancem os aspectos psicossociais e proporcionem aos trabalhadores oportunidades de reflexão e debate a respeito dos temas elementares no processo de preparação para o pós-carreira.
Os trabalhadores também precisam assumir sua parcela de responsabilidade no preparo para a aposentadoria, participando dos programas, quando existirem em sua organização, ampliando as possibilidades de conhecimento e reconhecimento dos fatores de proteção que possuem e dos fatores de risco para uma experiência não saudável de aposentadoria e que podem ser minimizados mediante mudanças de crenças, atitudes e comportamentos.
Além disso, a elaboração de projetos de vida é uma estratégia importante na transição para a aposentadoria, pois possibilita perspectiva de futuro, reorganização do tempo livre e sentido de vida aos trabalhadores. Aposentadoria não significa inatividade nem recolhimento aos aposentos como a etimologia da palavra sugere. O aposentado pode e deve desenvolver formas de participação familiar e social, ressignificando sua identidade e exercendo sua cidadania.
O trabalhador, inserido nos programas de orientação para aposentadoria, poderá usufruir de contextos de reflexão e interação que lhe permitem seu desenvolvimento pessoal, reconhecimento da necessidade de cuidar da sua saúde física e psíquica, ressignificar seus conceitos e pré-conceitos relativos ao trabalho e à experiência de aposentar-se, constituir projetos de futuro e restabelecer seus vínculos familiares e sociais, ou seja, melhorar a qualidade de vida global.
2) Como o psicólogo organizacional pode atuar nesse sentido?
O psicólogo organizacional no contexto contemporâneo das organizações de trabalho precisa estar em processo de atualização permanente sobre temas fundamentais na relação trabalho-trabalhador-saúde-adoecimento. Entre eles, a longevidade e o impacto da coexistência de diferentes gerações no mesmo ambiente laboral. Como lidar com os conflitos intergeracionais? Como atender às necessidades específicas de cada geração? Como colaborar no alinhamento dos interesses da organização às condições de trabalho e promover saúde mental? Como realizar a gestão do conhecimento dos trabalhadores mais velhos? Como apoiar os trabalhadores que desejam e preenchem os critérios institucionais e legais para a aposentadoria? São alguns dos desafios prementes para nossa categoria.
No contexto de preparo para a aposentadoria, o psicólogo organizacional pode elaborar, executar e avaliar programas de orientação para aposentadoria. Esses programas visam ao fomento de ações sistematizadas que colaborem para a inserção, debate e reflexão a respeito de informações relativas aos aspectos psicossociais e previdenciários vinculados à aposentadoria. Os temas transitam, geralmente, em espaços de reflexão e compartilhamento de experiências e construção coletiva de conhecimento. No geral, são desenvolvidos em uma perspectiva multi e interdisciplinar, com contribuições de diversas áreas do conhecimento, tais como: Psicologia, Assistência Social, Sociologia, Enfermagem, Medicina, Educação Física, Nutrição, Direito, entre outras.
É importante levar em conta que, como é um processo heterogêneo, a experiência da aposentadoria desenvolve-se de modo diferente e singular para os trabalhadores. Por isso, a equipe que irá implementar o programa precisa identificar e analisar o contexto organizacional em que ocorre, sua inserção social, política e cultural, além de fatores pessoais, relacionados à história de vida, à trajetória profissional e às redes de apoio social do aposentando.
Além disso, os programas de orientação para aposentadoria facilitam o investimento nos fatores individuais, psicossociais e organizacionais de proteção. Estes devem fazer parte de intervenções preventivas que possam favorecer um processo de adaptação à aposentadoria com saúde, qualidade de vida e bem-estar.
Outro aspecto relevante para reflexão refere-se ao fato de que nem sempre a aposentadoria coincide com a velhice, pois existem diferentes modalidades que atendem a diversos requisitos, como por exemplo, a aposentadoria por invalidez, quando o trabalhador apresenta um quadro de adoecimento físico ou mental que compromete sua capacidade laborativa de modo permanente. O fato de ser voluntária ou involuntária, desejada ou imposta, impacta diretamente o valor dessa experiência para o indivíduo. As modalidades que fogem da regra geral, idade e tempo de contribuição, demandam intervenções específicas que possam acolher e orientar os trabalhadores, conforme seu processo singular de desligamento do trabalho.
Há casos em que é necessário encaminhar os trabalhadores que no preparo para aposentadoria demonstram grave sofrimento psíquico ou até transtornos mentais e comportamentais já diagnosticados. É responsabilidade dos orientadores para aposentadoria sensibilizar os aposentandos para essa necessidade.
3) O Estatuto do Idoso prevê que o Poder Público crie e estimule programas de preparação dos trabalhadores para a aposentadoria. Como as organizações têm lidado com essa demanda?
O desenvolvimento de programas de orientação para aposentadoria teve seu início na década de 1950 nos Estados Unidos. No entanto, focavam suas orientações em aspectos previdenciários e administrativos. Com a melhoria das relações trabalhistas e o crescimento das organizações de trabalho, outros conteúdos foram incluídos com a finalidade de responder às novas demandas psicossociais relacionadas ao desligamento do trabalho.
No Brasil, a década de 1980 é considerada como marco para intervenções de planejamento para a aposentadoria. A realização de programas dessa natureza também seguiram as características de evolução mencionadas acima em termos de conteúdos e, a partir de 2003, já se destaca um movimento consolidado e, cada vez mais, crescente de organizações de trabalho que empreendem projetos com a finalidade de educar e orientar seus trabalhadores para a aposentadoria. As organizações de trabalho brasileiras do setor público são as que mais realizam programas de orientação para aposentadoria, inclusive, alguns legitimados por normas legais, como portarias e decretos. Infelizmente, nem sempre com aporte financeiro no orçamento anual dessas instituições para o desenvolvimento das ações.
Apesar da atualidade e relevância do tema, muitas organizações ainda não desenvolvem ações sistemáticas de planejamento e preparo para a aposentadoria, sobretudo em formato de programas. Em razão do fenômeno da longevidade e seu impacto no contexto laboral, é preciso que gestores reconheçam a necessidade premente de investimento em ações que possam colaborar para a qualidade de vida de trabalhadores de todas as gerações, já que se aposenta como se vive e como se trabalha numa perspectiva de desenvolvimento humano.
Portanto, as organizações de trabalho ao promoverem ações e projetos de preparo para a aposentadoria estão investindo em práticas de valorização do trabalhador e não onerando seus orçamentos. A realização de programas que tenham esse propósito é relevante para o indivíduo, para a organização e para a sociedade. Não é mais possível tratar esse tema como “perfumaria” ou gastos desnecessários.
Os programas de orientação para aposentadoria configuram-se como facilitadores para a tomada de consciência sobre a necessidade de planejamento e colaboram na tomada de decisão de aposentar-se ou não; contribuem para o planejamento estratégico pessoal e profissional; instigam a reflexão, o debate e a ressignificação de ideias preconcebidas e estereotipadas a respeito do processo de envelhecimento humano e da aposentadoria; favorecem uma nova concepção acerca do aproveitamento do tempo livre; além de constituírem um importante fator de proteção na transição para uma aposentadoria saudável e digna.
4) Vivemos hoje no Brasil a iminência de uma reforma na previdência com mudanças significativas no que se refere à aposentadoria. O que o psicólogo nas organizações de trabalho pode esperar desse cenário?
Diante da insegurança atual no campo da previdência, muitos trabalhadores têm decidido aposentar-se imediatamente, sem planejamento psicossocial, por medo de mudanças nos critérios legais que lhes garantem o direito à aposentadoria.
Esse processo de decisão atravessado pelo medo, pela insegurança e pela incerteza pode acarretar importantes consequências na vivência da pós-aposentadoria. Caso o trabalhador ao longo do curso de vida pessoal e profissional não tenha investido em fatores protetivos da saúde física, mental e social, podem ocorrer quadros de adoecimento, com prejuízos sérios à qualidade de vida global.
A literatura anuncia e denuncia que no período da aposentadoria as desigualdades sociais e econômicas tendem a ficarem mais evidentes. Por isso, qualquer reforma no campo da previdência deveria não apenas considerar o aumento da expectativa média de vida, mas também as singularidades e a diversidade de vivências laborais em nosso país. Há que se ter cuidado para não aumentar ainda mais o abismo histórico das diferenças e da injustiça.
Nesse cenário instável e marcado por profundas mudanças, o psicólogo organizacional precisa considerar o valor dos programas de orientação para aposentadoria como ferramenta de suporte aos trabalhadores que poderão contar com espaços coletivos de reflexão, troca de experiências e emoções, construção coletiva de conhecimento relevante acerca de temas que lhes são significativos, enfim, é uma estratégia de acolhimento e promoção de elementos protetivos no processo de aposentadoria.
Vale lembrar também que com a reforma trabalhista e a possível reforma da previdência a ser aprovada, muitas organizações de trabalho tendem a demitir seus trabalhadores para nova contratação sob as novas regras ou até pressionar para que se aposentem. Nesse sentido, é importante reforçar que os programas de orientação para a aposentadoria não podem ser confundidos com mecanismos organizacionais que têm a pretensão de “forçar” a aposentadoria. Têm sim a função de colaborar no processo reflexivo e decisório do trabalhador para que ele possa optar em continuar trabalhando na mesma organização até reunir elementos que o façam desligar-se da instituição, aposentar-se definitivamente ou atuar em outras frentes de trabalho. É uma proposta de desenvolvimento humano e aposentar-se ou não é um processo de alta complexidade que envolve diversos elementos pessoais, organizacionais, sociais, culturais, econômicos e políticos e somente o trabalhador pode decidir qual o melhor momento para sua aposentadoria.
Nesse sentido, cabe ao psicólogo da organização propiciar espaços individuais e coletivos para reflexão sobre os eixos temáticos que estão presentes na experiência de preparo e decisão de aposentar-se. Considerando que a preparação para aposentadoria é um processo de educação permanente ao longo da vida, o público-alvo dos programas não deve ser exclusivamente constituído por pré-aposentados, mas por qualquer trabalhador da organização que queira investir em desenvolvimento pessoal e profissional. Assim, nos programas devem estar previstas ações para todas as gerações que compõem a organização de trabalho.
O psicólogo organizacional ainda precisa colaborar na elaboração de estratégias para que as organizações de trabalho sejam capazes de assumir essa nova parcela de trabalhadores longevos, com muita experiência, conhecimento e especificidades. Os trabalhadores mais experientes podem contribuir de modo significativo para o alcance dos objetivos institucionais e podem, caso desejem, continuar trabalhando na organização até que se sintam aptos e queiram aposentar-se.
5) Como podemos enquanto sociedade pensar a aposentadoria no sentido do desenvolvimento humano?
Há no imaginário social ideias pré-concebidas sobre o processo de desenvolvimento humano que direcionam comportamentos e atitudes frente a diferentes fenômenos humanos. Em relação ao trabalho, por exemplo, tem-se a visão que somente aquele que produz tem valor. Há uma divisão entre mundo do trabalho e mundo do não trabalho. Quem estiver fora do primeiro, ocupa um lugar social marcado por preconceitos e estigmas diversos que o exclui da vida social e o marginaliza.
O que representa, então, a aposentadoria em um contexto capitalista, no qual o trabalho é fonte indiscutível de status, de valor e de inclusão social? A relação do trabalho com a construção identitária precisa ser reconhecida e o aposentar-se, na lógica do capital, pode representar uma ruptura dolorosa, caso não haja preparo e oportunidades de reflexão e novas formas de participação social livres da lógica que valoriza o ser humano enquanto força de trabalho.
Além disso, a aposentadoria costuma estar associada à velhice que é também carregada de significados hostis e estereotipados que a colocam em contraposição ao desenvolvimento humano. É necessário instituir formas de combate ao ageismo, preconceito relacionado à idade, e promover a educação sobre o processo de envelhecer e a respeito das relações intergeracionais que constituem autênticas molas propulsoras de desenvolvimento pessoal e social.
Felizmente, as diversas experiências de envelhecimento têm provocado mudanças importantes nos conceitos e pré-conceitos relativos ao que é envelhecer, modificando crenças, atitudes, valores, comportamentos e políticas públicas sobre o tema. As teorias atuais sobre desenvolvimento humano evidenciam que esse processo ocorre ao longo do curso de vida e que possibilidades de se desenvolver não estão restritas a nenhuma fase e que deve se considerar aspectos pessoais, socioculturais, históricos, econômicos e políticos.
Em razão do aumento da expectativa média de vida e a mudança no perfil demográfico brasileiro, há a possibilidade de um tempo maior a ser vivido no período da aposentadoria, demandando daqueles que se desligam de uma carreira o investimento em projetos de vida, numa perspectiva de futuro que possam lhes proporcionar sentido de vida, bem estar subjetivo e qualidade de vida global. O desafio está em viver mais, com autonomia e independência.
Assim, os programas de orientação para aposentadoria assumem uma função social significativa, urgente e necessária, pois inserem nos discursos e práticas novos olhares sobre o fenômeno da aposentadoria, instigando a reflexão a respeito de quem é o aposentado em nosso país.
Numa perspectiva de política de desenvolvimento humano, é preciso desmistificar ideias equivocadas sobre o processo de desenvolvimento humano e envelhecimento humano, repensar os valores relacionados à produtividade, ao modo como se percebe e se representa o aposentado, construindo coletivamente uma sociedade justa para todas as gerações de trabalhadores.