Hoje, dia 20 de junho, é comemorado o dia mundial do refugiado. Talvez a primeira imagem que lhe venha a mente seja referente a atual crise humanitária na Síria ou a crescente chegada de venezuelanos ao Brasil. Porém quem é considerado refugiado? Como é esse processo no Brasil e o que a Psicologia tem a ver com isso?
O ACNUR (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados) incentiva o uso da nomenclatura correta, esclarecendo a diferença entre o refugiado e o migrante. O primeiro é legalmente amparado pelo Direito Internacional, tendo como marco legal a Convenção da ONU de 1951. Assim, enquanto o refugiado tenta escapar de um grave conflito armado ou de “um fundado temor de perseguição”, o migrante, por sua vez, busca o descolamento por vislumbrar melhores condições de vida em outro país, não sendo constatada ameaça de perseguição ou de morte. De fato, em muito casos, há a linha é tênue entre o refugiado e o migrante, necessitando de uma análise caso a caso, sendo realizadas entrevistas com os solicitantes de refúgio e decisões tomadas por órgão colegiado específico, o CONARE (Comitê Nacional para Refugiados).
Tomando emprestado o jargão de Rogers, sabemos que ninguém nasce homem, mulher e, tampouco, refugiado. Em especial, as contribuições da fenomenologia mostram-se úteis para a compreensão do processo de se tornar refugiado, pois a própria definição de refugiado gera uma série de debates sobre aspectos objetivos e subjetivos na avaliação do que venha a ser o “fundado temor de perseguição”, bem como propicia um novo olhar sobre a intersubjetividade que se inicia na entrevista, mas não se encerra nesta, refletindo a complexa teia entre os atores internacionais.
Enquanto psicólogos, percebemos que a situação de ameaça de morte, o rompimento de vínculos sociais, afetivos e a própria situação de vulnerabilidade sócio-política-econômica que os solicitantes de refúgio vivenciam desde a saída de seus países até à chegada em um novo território podem constituir fatores de risco, levando ao sofrimento psíquico. Observa-se um aumento dos estudos sobre a saúde mental dos refugiados. Em uma recente revisão, Galina (2017) pontua como principais temas pesquisados são: a diversidade cultural, a importância da família e das redes de apoio, a atuação dos profissionais envolvidos com estes grupos, a presença ou não de doença mental, as intervenções e o comprometimento com os direitos humanos.
O Brasil é tido como um país receptível à temática do refugiado, signatário dos principais acordos internacionais, experienciando um aumento crescente de solicitações de refúgio. No entanto, há muito o que se avançar no que tange ao atendimento dessas pessoas e a implementação de políticas públicas eficazes. Trata-se, portanto, de um campo profícuo que necessita de profissionais sensíveis e comprometidos com uma atuação crítica. O Comitê de Direitos Humanos do CRP 01/DF tem debatido tais questões, buscando promover novos diálogos que contribuam para a formação dos profissionais engajados.
Quem é considerado refugiado?
De acordo com Convenção de 1951, define-se como refugiado a pessoa que em consequência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951, e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertencimento a grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha a sua residência habitual em consequência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.
A Convenção de 1951 – fonte de direito primário – consiste em um importante marco legal. Porém, o fenômeno de tornar-se refugiado antecede o marco de 1951, remontando a fatores sócio-históricos desde 1919, após o estabelecimento da Sociedade das Nações, quando, posteriormente, em 1921, houve a criação do Alto Comissariado para os Refugiados Russos pela Liga das Nações, devido à problemática política e econômica da Revolução Bolchevique e das crises do Império Otomano. Além de atender os russos, a partir da definição da situação jurídica, organização do processo de repatriação e promoção de assistência, esse Alto Comissariado ainda acolheu os armênios na Grécia, em 1924, levando à criação, seis anos mais tarde, do Escritório Nansen para Refugiados.
Posteriormente, em 1936, houve a criação do Alto Comissariado para Refugiados Judeus provenientes da Alemanha, uma vez que a própria Alemanha fazia parte da Liga das Nações e se manifestava contrariamente ao reconhecimento dos judeus como refugiados. Com data limite para encerramento, o Alto Comissariado para Refugiados Judeus e oEscritório Nansen para Refugiados foram substituídos pelo Alto Comissariado da Liga das Nações para Refugiados em 1938 que tentou que dar conta de 4 milhões de refugiados da 1a. Guerra Mundial e 40 milhões de refugiados da 2a Guerra Mundial até o período de 1946, quando foi extinta.
Realizando uma excelente sistematização histórica, Jubilut (2007) pontua que, com a criação do Alto Comissariado da Liga das Nações e diante da escassez de recursos assistenciais para a enorme quantidade de refugiados que se formava, houve a necessidade de um aprimoramento do processo de avaliação dos casos de refugiados em que se começou a observar também os aspectos individuais, além dos aspectos coletivos. A autora elucida que até 1937, o Comitê Intergovernamental assumiu as funções do Alto Comissariado. Assim, antes mesmo da atuação da ONU entrar em vigor em 1948, foram elaboradas resoluções que tratavam da temática dos refugiados, preparando para o estabelecimento da Organização Internacional para Refugiado que atuou de fato até 1952, sendo substituído pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – ACNUR, criado em 1950, tal qual como é conhecido hoje.
Como é o processo?
A entrada de solicitantes de refúgio nos países, normalmente ocorre de duas principais maneiras: ilegalmente, via área terrestre, aérea ou aquática, ou legalmente com visto temporário, como turista ou estudante, por exemplo. É previsto que os solicitantes de refúgio acionem a polícia de imigração que, no caso do Brasil, é a Polícia Federal. Entretanto, o que se vê na prática, é que muitos já contactam organizações não-governamentais para auxiliar no processo como agências intermediárias, conforme registra Perin (2014) em seu recente trabalho etnográfico no Brasil. Desse modo, o primeiro contato é realizado com autoridade migratória na fronteira para o preenchimento do formulário, iniciando, assim, o pedido de proteção. Após o registro, é disponibilizado um protocolo provisório que funciona como documento identificatório, válido por um ano, podendo ser renovável até a decisão de um Comitê Nacional para Refugiados que, no caso brasileiro, é conhecido como CONARE, o qual permite ao estrangeiro obter documentos (carteira de trabalho e cadastro de pessoa física) e acessar os serviços públicos.
Posteriormente, é realizada uma entrevista por um oficial de elegibilidade do CONARE ou da Defensoria Pública da União (DPU), sendo permitido que o solicitante indique em qual língua será conduzida a entrevista, ou se haverá a necessidade de um intérprete, podendo indicar também o gênero do entrevistador de sua preferência. Em determinadas situações, o solicitante poderá ser chamado para uma segunda entrevista com o advogado de uma das instituições ligadas ao ACNUR. Além disso, durante todo o processo, a pessoa tem direito de ser assistido por um advogado da Defensoria Pública da União ou das organizações parceiras do ACNUR de forma gratuita.
Dessa maneira, observa-se que o procedimento de determinação da condição de refugiado é realizado por um Comitê, um órgão colegiado, que analisa e decide os pedidos de refúgio em reuniões periódicas composta por representantes de diversos setores. No caso do Brasil, o CONARE conta a com a presença de representantes dos ministérios da Justiça, Relações Exteriores, Trabalho, Saúde, Educação, Polícia Federal, ACNUR e representante de ONG que assista aos refugiados. Para tanto, são elaborados documentos específicos que têm como objetivo constatar a condição a partir de dois processos: de levantamento dos fatos a partir da análise de cada caso e de aplicação das definições da Convenção de 1951e do Protocolo de 1967 em relação aos critérios de inclusão, cessação e exclusão.
Desse modo, a determinação da condição de refugiado é um processo que ocorre em duas etapas: a primeira em que são levantados os fatos pertinentes de cada caso e a segunda em que são aplicadas as cláusulas da Convenção de 1951 que definem a condição de refugiado em três critérios: “de inclusão”, “de cessação” e de “de exclusão”. De acordo com o Manual de Procedimentos do ACNUR, os fatos relevantes para a análise de cada caso devem ser fornecidos pelo próprio solicitante, primeiramente e, por sua vez, ao oficial de elegibilidade, cabe apreciar a validade de qualquer elemento de prova e a credibilidade de suas declarações.
O que nós podemos fazer em relação à essa temática?
Observa-se uma crescente interação entre Psicologia e Relações Internacionais. Tal como Ramírez e Torregrosa (1996, p. 201) resumem, a Psicologia é encontrada nas RI a partir de quatro perspectivas:\r\n
Cabe ressaltar ainda que a Psicologia (assim como as Relações Internacionais) não se constitui como ciência homogênea, pelo contrário, observa-se a diversidade de posições teóricas e metodológicas que se organizam a partir de referenciais filosóficos sobre a noção de homem, sua relação com o outro e sobre o modo de apreensão da realidade e formação do conhecimento.
A partir do meu interesse de compreender e ampliar a mútua influência entre Psicologia e Relações Internacionais, busquei estudar o fenômeno da entrevista na solicitação de refúgio por compreender que esse encontro com ou outro – sob o ponto de vista psicológico – consiste no encontro em uma dimensão intersubjetiva com a alteridade e – sob o ponto de vista das relações internacionais – refere-se ao encontro de atores internacionais e representantes dos Estados, sintetizando toda a complexidade das (inter)relações (inter)pessoais e (inter)nacionais. A ênfase no “inter” não se apresenta como um mero jogo de palavras, mas denuncia o posicionamento teórico-metodológico proposto: a saber, a perspectiva fenomenológico construtivista.
Carolina Moreira de Alcântara é psicóloga clínica, Mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela Universidade de Brasília - UnB (2010). Especialista em Relações Internacionais (UnB - 2017) e em Impactos da Violência na Saúde (FIOCRUZ, 2018). Atualmente, em formação em Psicodrama Clínico (ABP - 2018). Pesquisadora na área de Saúde Mental, Violência e Direitos Humanos.
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0646212059535150
Referências Bibliográficas:
GALINA, Vivian Fadlo et al . A saúde mental dos refugiados: um olhar sobre estudos qualitativos. Interface (Botucatu), Botucatu , v. 21, n. 61, p. 297-308, Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832017000200297&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 14 jun. 2018.
JUBILUT, Liliana. O direito internacional dos refugiados e sua aplicação no ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo: Método, 2007.
PERIN, Vanessa. Um campo de refugiados sem cercas: etnografia de um aparato de governo de populações refugiadas. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 20, n. 41, p. 303-330, jan./jun. 2014 Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/S0104-71832014000100011>. Acesso em: 14 jan. 2017.
RAMÍREZ, Sagrario; TORREGROSA, José V. Psicosociología de las relaciones internacionales. In: ALVARO, Jose L.; GARRIDO, Alicia; TORREGROSA, José Ramon (Eds.). Psicologia social aplicada. Madrid: McGraw-Hill, 1996.