Nesta sexta-feira (14), a partir das 19h, o 7° Festival Internacional de Curta-metragem “Curta Brasília” exibe o documentário “Absolvição imprópria”, dirigido pela antropóloga Érica Quinaglia Silva. O filme, de 25 minutos e censura 18 anos, aborda sanções penais destinadas a pessoas com transtornos mentais que tiveram algum tipo de conflito com a lei. O Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF) compartilha entrevista concedida pela diretora, que conversou conosco sobre sua experiência com o tema e sobre os desafios para promover saúde mental em contextos de restrição de liberdade. Érica Quinaglia Silva é professora da Universidade de Brasília (UnB), doutora em Sociologia, Demografia e Antropologia Social pela Université Paris Descartes (Sorbonne) e pela Universidade Federal de Santa Catarina (2011), com pós-doutorado em Bioética, Ética Aplicada e Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz, Universidade do Estado do Rio de Janeiro e Universidade Federal Fluminense (2012). Possui mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (2008) e graduação em Antropologia (bacharelado) e Ciências Sociais (licenciatura) pela Universidade de Brasília (2005). Atua nas áreas: Sociologia urbana, Antropologia da saúde, bioética, ética aplicada, saúde coletiva, saúde mental, religiosidades brasileiras, Antropologia da morte, noções de pessoa e subjetividade, Antropologia audiovisual e direitos humanos. |
1- Em que contexto surgiu a ideia de produção do filme “Absolvição Imprópria”?
Eu sou professora da Universidade de Brasília desde 2012 e, em 2013, comecei uma pesquisa sobre medida de segurança, que é uma sanção penal aplicada a pessoas que têm transtornos mentais e que tiveram conflito com a lei. Existem duas espécies dessa medida de segurança, que são a internação e o tratamento ambulatorial. A internação acontece em sistema de custódia e tratamento psiquiátrico, que aqui no Distrito Federal é a Ala de Tratamento Psiquiátrico dentro da Penitenciária Feminina, e o tratamento ambulatorial pode acontecer nas redes pública ou privada de saúde. De acordo com o Código Penal, as pessoas que são consideradas inimputáveis ou semi-imputáveis, ou seja, que são total ou parcialmente incapazes de entender o caráter ilícito do fato que cometeram, podem receber uma dessas duas espécies de medida de segurança. Se o fato cometido fosse passível de reclusão, essas pessoas deveriam ser encaminhadas para internação e se o fato fosse passível de detenção, essas pessoas seriam encaminhadas ao tratamento ambulatorial, mas mesmo o Código Penal, que é de 1940, prevê que nesses casos as pessoas que têm transtornos mentais e que tiveram conflito com a lei, elas devem receber um tratamento, não uma pena. Então a medida de segurança ou absolvição imprópria é uma sanção que visa ou deveria visar ao tratamento, mas nesse distanciamento entre a norma e a atualização dela, o que se tem na prática é um enclausuramento que pode ser ad aeternum. A gente teve movimentos de reforma psiquiátrica no mundo desde a década de 1950, e no Brasil desde a década de 1970, concomitante com a nossa reforma sanitária que deu origem ao Sistema Único de Saúde (SUS) e, depois de 12 anos do projeto de lei, a gente a aprovação da nossa Lei n° 10.216, de 2001, que é a nossa Lei da Reforma Psiquiátrica. Como essa lei é superveniente ao Código Penal, deveria haver um entendimento de que, em relação às pessoas com transtornos mentais, essa lei deveria ser seguida no sentido de que preconiza que deve prevalecer o tratamento fora de ambientes hospitalares ou prisionais, o que é ainda pior. Mesmo com a aprovação dessa lei em 2001, o que prevalece é a internação, seguindo o Código Penal. A lei da reforma psiquiátrica é posterior e diz que a internação só deve acontecer quando todas as medidas extra-hospitalares se mostrarem ineficientes, mas como eu disse que há um distanciamento entre a norma e a atualização dela, o que prevalece na prática nesses casos em que as pessoas têm transtornos mentais e cometeram delitos, é a internação e, como eu disse, a internação nem se dá em instituições hospitalares, mas em instituições prisionais. O filme “Absolvição imprópria” mostra uma dessas instituições, que é a Ala de Tratamento Psiquiátrica, que é uma prisão, um espaço dentro da Penitenciária Feminina do Distrito Federal, no qual essas pessoas ficam ali enclausuradas e esquecidas e silenciadas sob a égide do Estado. A pesquisa que iniciei em 2013 foi para fazer um levantamento sociodemográfico dessa população no Distrito Federal junto com estudantes da UnB. Para além desses dados quantitativos, em 2016 nós coletamos dados qualitativos por meio de uma etnografia dentro da Ala de Tratamento Psiquiátrico e conversando com familiares, representantes do Estado, autoridades e outras pessoas que pudessem oferecer diferentes perspectivas sob a medida de segurança, dando origem ao filme, que traz também experiências exitosas. O Programa de Atenção Integral ao Louco Infrator (PAILI), que funciona no estado de Goiás, e o Programa de Atenção Integral ao Paciente do Judiciário (PAI-PJ), no estado de Minas Gerais são programas muito interessantes nesse sentido. Conheci mais profundamento o PAILI, em Goiás, um estado que não tem manicômio judiciário. As pessoas que têm transtorno mental e que tiveram conflito com a lei nesse estado, elas recebem a medida de segurança ou absolvição imprópria, que é essa sanção penal, mas quem dá conta de todo o tratamento é a Secretaria de Estado de Saúde. Então todo o tratamento dessas pessoas é feito no SUS e eu conversei com o idealizador desse programa, o Doutor Haroldo Cetano, que aparece no filme, para mostrar um contraponto da Ala de Tratamento Psiquiátrico ou dos manicômios judiciários que existem no Brasil afora. Para a gente ter uma ideia estatística, a reincidência lá é inferior a 5% e é um programa que é assistencial e não custodial, não visa à pena, mas sim ao tratamento. Em outros espaços como o DF, eu não tenho esse dado exato, mas a reincidência é muito alta, talvez superior a 70%. Isso só mostra que, se a gente seguisse a reforma psiquiátrica, se essas pessoas tivessem um efetivo tratamento, não só não ocorreria reincidência como, particularmente para essas pessoas, elas teriam uma qualidade de vida, poderiam ser reinseridas na sociedade, por meio de projetos terapêuticos singulares, elas teriam resgate de cidadania, que da foram como está constituída medida de segurança, elas não têm. O filme mostra esse contraponto para dar um pouco de esperança e também para a gente repensar o que foi e o que é a reforma psiquiátrica que está em andamento, muito embora estejamos vendo todo um retrocesso na política de saúde mental que tem cortado repasses de recursos para Centros de Atenção Psicossocial, para serviços residenciais terapêuticos e outros que seguem essa linha.
2- As recomendações da Lei 10.216/2011, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais, como você ressaltou, são no sentido de que elas sejam atendidas pela Rede de Atenção Psicossocial do SUS (RAPS) e pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que substituem o modelo de asilo e focam na reinserção social dos pacientes através do trabalho, lazer e fortalecimento dos laços familiares e comunitários. Apesar dessa mudança de paradigma, segundo os dados nacionais mais recentes, referentes a um censo realizado em 2011, quase 4 mil pessoas estão internadas em manicômios judiciários no Brasil. Por que essa prática, mesmo com tantas críticas, continua a ser adotada na maior parte do país, na sua avaliação?
Um exemplo disso é a recentemente publicada Portaria n° 3.659/2018, do Ministério da Saúde, que suspende o repasse de recursos financeiros destinados ao incentivo de custeio mensal de Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Unidades de Acolhimento (UA) e de Leitos. Eu acho que falta interesse político, uma vez que pessoas que têm transtornos mentais e cometeram delitos são duplamente estigmatizadas. Para além do interesse político, falta o interesse de conselhos profissionais. Essa temática deveria entrar na pauta da agenda política dos conselhos não só de Psicologia, mas de Medicina, na própria Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), enfim… a gente deveria resgatar essa reforma pensada no Brasil desde a década de 1970 e levá-la a cabo efetivamente. Seria importante também uma conscientização da sociedade a respeito dessas pessoas que são tidas como perigosas. Esse é um ponto que aparece no filme e que é fundamental para pensar sobre as pessoas com transtorno mental e, particularmente, as pessoas com transtornos mentais que cometeram delito.
3- Um dos profissionais entrevistados no filme diz uma frase que chama a atenção. Nas palavras dele, “o perigoso não é a loucura, perigoso é o abandono”. Como você avalia essa colocação?
Ao contrário do que acontece nos casos comuns em que há um período de pena a cumprir, no caso da medida de segurança você lança um juízo para o futuro que pode condenar essas pessoas a ficarem reclusas ad aeternum porque você diz que essas pessoas são perigosas. E quando elas vão deixar de ser? A gente não pode prever o futuro porque a própria ideia de periculosidade faz parte da condição humana. Todos nós somos potencialmente perigosos a depender das circunstâncias nas quais nos encontramos. Então essa ideia de periculosidade cria um discurso do medo, amparado por um saber/poder jurídico, psiquiátrico, que inviabiliza uma inserção social dessas pessoas. A avaliação de periculosidade no sistema judiciário brasileiro não dá conta das especificidades, dos agenciamentos dessas pessoas. No entanto prevalece esse laudo dado por um psiquiatra. É um campo de forças dentro dos tribunais de justiça, como o caso de uma equipe multiprofissional no Distrito Federal que acompanhava mais sistematicamente essas pessoas, mas que foi tão desvalorizada que já não existe mais. Houve um parecer do Ministério Público em 2011 considerando-a vanguardista no Brasil junto com o PAILI e o PAI-PJ, mas já não existe. Isso significa essas pessoas com transtornos mentais que cometeram delitos no Distrito Federal estão mais desamparados do que quando fiz a pesquisa. Existe um acompanhamento de uma equipe de saúde dentro da Ala Psiquiátrica, mas a própria equipe de saúde sabe que aquilo é uma prisão e que é difícil dar o tratamento efetivo no espaço prisional e em um espaço em que você tem pessoas com transtornos variados. Deve haver maior capacitação e interação dos profissionais com o Judiciário. Essa é inclusive uma recomendação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). De que haja essa troca de saberes para que esse preconceito, esse estigma da periculosidade que ronda o Judiciário, seja revisto. O uso desse termo deveria ser revisto de repente e trocado por presunção de sociabilidade para pensar se essas podem sair de uma medida de internação, se têm familiares, programas de volta para casa, amparo na Rede de Atenção Psicossocial, possibilitando uma reinserção social. A loucura não está ligada somente ao indivíduo, ela é relacional, ligada ao contexto. As pessoas com quem eu conversei e que aparecem no filme cometeram um delito, mas o sofrimento pelo qual elas passaram também decorreu de uma negligência do Estado quando da aplicação da medida de segurança. E é anterior à aplicação da medida de segurança porque essas pessoas que chegaram ali antes procuraram o serviço de saúde, elas procuraram inserção no mercado de trabalho e no sistema educacional e não tiveram acesso a nada. O quadro de saúde só se agravou em decorrência dessa circunstância que extrapola o próprio indivíduo. É preciso pensar nas faltas que a sociedade e o Estado deixaram em relação a essas pessoas.
4- Nesta semana foram divulgados resultados de inspeções realizadas em hospitais psiquiátricos pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), juntamente com o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), Ministério Público do Trabalho (MPT) e Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT). Entre outras coisas, foi registrado o caso de um paciente em São Paulo que estava internado havia 60 anos, sem sair da instituição psiquiátrica. Você acredita que a detenção de pessoas com transtorno mental sem o tratamento adequado pode ser considerada uma forma de prisão perpétua?
No Brasil não temos autorização para pena de prisão perpétua. A gente não poderia jamais manter alguém enclausurado por mais de 30 anos. No caso da medida de segurança especificamente, o prazo máximo de internação deve ser análogo àquele que seria dado caso essa pessoa fosse para uma prisão comum. No entanto, muitas permanecem para além desse prazo. Na pesquisa que fizemos no Distrito Federal, pelo menos 5 pessoas que já tinham sua sentença extinta, permaneciam em medida de internação.
5- Como mudar esse cenário? É possível pensar em possibilidades para devolver a dignidade a essas pessoas e a reinserção social?
Assim como outros pesquisadores da área, eu espero articulação, conversas como a que estamos tendo para essa publicação, organização de seminários, trabalho de formiguinha para fazer um alerta sobre esse cenário, que é uma situação de violação de direitos humanos. Espero que haja conscientização sobre possibilidades outras, como essa do PAILI e do PAI-PJ. Dentro da Universidade nós escrevemos muitos artigos e dissertações, mas eu gosto de trabalho com filme e faço isso desde o Mestrado porque a gente consegue acessar pessoas que normalmente não leriam nossas teses e dissertações. A minha ideia é que, mesmo sendo um trabalho de formiguinha, mostremos essa realidade, que a gente conscientize a sociedade para que possamos pensar em mudanças.