Era 28 de janeiro de 2004 o dia em que os auditores-fiscais do Trabalho Nélson José da Silva, João Batista Soares Lage e Eratóstenes de Almeida Gonçalves, acompanhados pelo motorista Aílton Pereira de Oliveira, foram assassinados ao investigar denúncias de trabalho escravo em uma fazenda no munícipio de Unaí/MG, a cerca de 170 quilômetros de Brasília. Em homenagem àqueles profissionais, hoje é celebrado o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), o trabalho análogo ao escravo é um fenômeno que afeta mais de 40 milhões de pessoas em todo o mundo, das quais 25% são crianças. No Brasil, desde 1995 mais de 53 mil trabalhadores foram resgatados nessa situação.
Para falar sobre o tema e perspectivas de intervenção, o Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF) conversou com a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) e coordenadora nacional de erradicação do trabalho escravo, Lys Sobral Cardoso. Confira a seguir:
O que configura uma atividade como trabalho escravo nos dias atuais? Essa prática está restrita a ambientes rurais ou também ocorre em meio urbano?
O conceito de trabalho escravo no Brasil está contido no artigo 149 do Código Penal, que traz quatro modalidades de trabalho análogo ao escravo. Chamamos de trabalho análogo ao escravo porque, desde 1888, não é mais possível ter propriedade sobre outro ser humano. As quatro modalidades que o Código prevê são trabalho forçado, servidão por dívidas, jornada exaustiva e condições degradantes de trabalho. A Organização das Nações Unidas (ONU) e a OIT têm também conceitos de trabalho escravo, mas no Brasil todos eles convergem para o contido no artigo 149 do Código Penal. Essas modalidades nós encontramos em todos os meios, seja no meio rural (que é predominante devido ao contexto histórico de o Brasil ter sido formado a partir de latifúndios e concentração de terra) ou no meio urbano como, por exemplo, em hotéis, na construção civil e na exploração do trabalho doméstico.
Quais são as frentes de atuação do MPT hoje na erradicação do trabalho análogo ao escravo no país?
Devido à gravidade do problema e à necessidade de intervenção, o MPT criou em 2002 uma coordenadoria nacional que hoje é chamada de Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo em alusão às nossas duas frentes de trabalho, que são o combate em si, a punição dos responsáveis, o resgate e a retirada dos trabalhadores das condições de exploração, que é a nossa principal frente de atuação, mas também somos um órgão articulador de políticas públicas, fomentador, e temos medidas também voltadas para a prevenção e o atendimento às vítimas do trabalho escravo, seu círculo familiar e comunitário.
Que tipo de trabalho é desenvolvido no sentido da prevenção e reinserção social das vítimas de trabalho escravo?
O Projeto Ação Integrada, com esse nome, foi criado em meados de 2009, no Mato Grosso, a partir de cooperação entre diversas instituições. Ele queria responder às seguintes perguntas: o que acontece com o trabalhador depois de resgatado e como evitar que ele volte ao contexto de exploração? A ideia era reunir esforços para a qualificação profissional dos trabalhadores resgatados para que eles pudessem se reinserir no mercado de trabalho em melhores condições. O que se percebeu em 2017 foi que, mesmo com a qualificação profissional, eles voltavam a ser explorados, inclusive nos mesmos setores da economia, nos mesmos locais e até pelos mesmos empregadores. Diante dessa constatação, o MPT em Mato Grosso assinou um termo de cooperação com a Universidade Federal da Bahia, onde também existia um projeto semelhante, e que buscava inserir os trabalhadores resgatados nas políticas públicas já existentes no estado.
Do termo de cooperação, surgiu o projeto Vida Pós-resgate, que ainda existe, e no âmbito do qual está sendo desenvolvida uma pesquisa para mostrar o que existe, quais são os problemas encontrados e que medidas podem ser mais eficazes para, de fato, erradicar o trabalho escravo. O primeiro relatório já foi divulgado e o segundo encontra-se em fase de finalização. O primeiro relatório constatou que, de fato, a qualificação profissional pode ser eficiente para trazer um ganho mais efetivo na vida do trabalhador, principalmente nesse contexto de desemprego. O segundo relatório já aponta a perspectiva de soluções coletivas como o exemplo de um assentamento no Piauí que, em 2014, ganhou o Prêmio Nacional de Direitos Humanos pelo esforço de erradicação do trabalho escravo. Desde que o assentamento foi formado, os trabalhadores não migraram mais em busca de ocupação e ficaram próximos de suas famílias, em um contexto comunitário mais forte e com meios de subsistência. Outros estados, como o Rio de Janeiro, também possuem projetos nesse sentido, mais voltado ao enfrentamento do tráfico de trabalhadores.
A Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo está trabalhando intensamente na criação de um fluxo de atendimento aos trabalhadores resgatados do trabalho escravo. Esse fluxo já está em processo de finalização e vai ser publicado em formato de cartilha agora em 2020, contemplando o atendimento às vítimas desde a denúncia e formas de proteção, que tipos de atendimento elas vão ter, se elas ficam no ambiente de trabalho denunciado ou se elas saem imediatamente e até o final pós-resgate, verificando em que políticas públicas esses trabalhadores precisam ser incluídos.
Dentro dessas políticas, existe a previsão do atendimento psicossocial?
Sim, existe a previsão da atenção a esses trabalhadores pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Os trabalhadores resgatados são atendimentos pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e pelos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS), mas esse atendimento ainda não é imediato e automático após o resgate. Como sabemos que todos eles passaram por violação grave de direitos, presumimos que eles vão precisar de atenção em saúde mental. Logo, se a pessoa apresentar um quadro de maior vulnerabilidade que demande um atendimento específico, aí sim ela será inserida nesse tipo de atendimento pelo SUS.
Existe um perfil das pessoas que costumam ser vítimas trabalho escravo?
O panorama que temos hoje dos trabalhadores resgatados tem um recorte sobretudo de gênero: mais de 84% são homens, com baixa escolaridade, histórico de trabalho infantil e ligação com o meio rural. Então o trabalho escravo tem essa forte ligação com a questão socioeconômica dos trabalhadores, a extrema pobreza está intrinsecamente relacionada. No entanto, os casos de tráfico de pessoas estão aumentando também devido ao reconhecimento e à ampliação do olhar para esse problema e, no que se refere ao tráfico para exploração sexual, as vítimas geralmente são mulheres. Diante dessa mudança de olhar e da forma de atuação dos diversos órgãos, esse recorte de gênero já vem sofrendo alteração nos últimos dois anos. Estamos começando a voltar mais o olhar para o trabalho doméstico, que é um tipo de investigação diferenciada de um problema que a gente sabe existe, mas que ainda não tem as medidas devidas de atuação estatal.
Que desafios o Ministério Público do Trabalho tem enfrentado no contexto atual? A senhora vê avanços significativos nas últimas décadas?
O grande desafio hoje é a própria manutenção dos órgãos de fiscalização. Por exemplo: já foram apresentadas diversas propostas no Congresso Nacional para alterar o conceito de trabalho escravo, tentando tirar as três principais modalidades e deixando somente a questão do trabalho forçado. Isso significaria acabar com o combate ao trabalho escravo no país. É um desafio manter a estrutura estatal de combate porque os órgãos de fiscalização sofreram dois grandes cortes orçamentários nos últimos anos. O Ministério do Trabalho inclusive foi extinto em 2019 e isso afetou, sem dúvida, o combate ao trabalho escravo porque limitou a atuação que era especializada na área. Quando o Brasil foi denunciado na esfera internacional, assinou um acordo para evitar a condenação formal no qual assumiu o compromisso de adotar diversas medidas, entre elas a criação do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo, que já foi até atualizado, mas cujo cumprimento efetivo ainda esperamos acontecer.