Ao abordarmos a temática da saúde mental em contextos indígenas, nos deparamos com dois dilemas. Um deles diz respeito à noção de que mente ou psiquê não fazem parte da cosmologia da maioria desses povos, que têm outras concepções sobre corpo, espírito, indivíduo e família, que extrapolam qualquer epistemologia ocidental, como a Psicologia. O segundo dilema diz respeito às condições de vida desses povos, que devido aos históricos de contato com a sociedade ocidental, marcadamente violentos e desorganizadores do tecido social dessas comunidades tradicionais, passam a vivenciar situações de vulnerabilidade territorial, socioeconômica e psicossociais.
O contato com a sociedade envolvente tem levado muitos povos a se verem destituídos de seus territórios tradicionais, onde estão seus lugares sagrados, assim como há décadas sofrem a ação de missões religiosas que buscam os afastar e extinguir seus saberes tradicionais sobre a cosmologia milenar de cada etnia. O contato colonizatório com a sociedade ocidental coloca esses povos em risco de epistemicídio (SANTOS, 1995), que seria a morte de conhecimentos tradicionais e práticas culturais de povos que habitam essas terras há pelo menos oito mil anos. Por isso, que é necessário partirmos de uma perspectiva sócio-histórica sobre os problemas de saúde, especialmente aqueles relacionados a questões psicossociais, como é o caso do uso prejudicial de álcool e das altas taxas de suicídio entre jovens indígenas, que chega a ser três vezes maior que a encontrada na população em geral (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2019a).
As comunidades indígenas fazem uso tradicional de substâncias alcoólicas, com bebidas fermentadas da mandioca, do milho e de outros alimentos próprios de seus territórios, utilizando-as em suas festas e rituais tradicionais, tendo seus modos próprios de quanto e quando beber, utilizando-se de formas nativas de controle dos seus processos de alcoolização(SOUZA; GARNELO, 2007).
Porém, com o contato com a sociedade envolvente, a qual levou outras bebidas alcoólicas para as aldeias, como a cachaça, essas formas tradicionais deuso do álcool sofreram transformações, dificultando o controle sobre o uso prejudicial dessas bebidas, passando a fragilizar laços familiares e comunitários de diversas aldeias indígenas, além de interferir nos rituais tradicionais de reprodução das relações sociofamiliares dessas comunidades tradicionais.
Por isso, os problemas decorrentes do uso prejudicial de álcool, como violência doméstica e comunitária e rompimentos nas relações intergeracionais, são questões coletivas, que devem ser abordadas por meio de estratégias participativas que levem em consideração o protagonismo das comunidades na resolução dos problemas que elas mesmas identificam, a partir de suas perspectivas nativas de entender as relações entre seus membros, com a natureza e com o cosmos. Assim como preconiza a Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2007), os profissionais de saúde devem:
Apoiar e respeitar a capacidade das diversas etnias e das comunidades indígenas, com seus valores, economias, tecnologias, modos de organização, de expressão e de produção de conhecimento, para identificar problemas, mobilizar recursos e criar alternativas para a construção de soluções para os problemas da comunidade.
Adentrando o universo dos povos indígenas, observa-se que não só as experiências de sofrimento têm uma rede própria de significados, construídos socioculturalmente, como também há diferentes concepções de morte e sobre o que é morrer (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2019b). Com isso, é necessário ouvir as perspectivas dos povos originários, para entendermos um pouco mais sobre o fenômeno do suicídio em povos indígenas por exemplo, que além de ser bem mais incidente, tal como observado em outros países (Canadá, Nova Zelândia, Austrália e Chile), dá-se principalmente na passagem para a vida adulta, visto que conforme dados do ministério da saúde, metade dos óbitos por suicídio entre indígenas ocorre entre 10 e 19 anos de idade (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2019a).
Muitas vezes, as comunidades mais tradicionais entendem o fenômeno do suicídio como decorrente de feitiços, relacionado a disputas e conflitos entre clãs e/ou famílias; em outras comunidades, o mesmo fenômeno é entendido como “punição” ou “vergonha” frente ao não cumprimento de regras tradicionais das relações de parentesco, como se apaixonar por alguém do mesmo clã em sociedades exogâmicas. As mudanças nas relações de parentesco, especialmente regras de casamento, assim como as mudanças nas relações intergeracionais sofreram grandes transformações decorrentes do contato com a sociedade não-indígena que impõe outros hábitos não-condizentes às formas tradicionais de muitas etnias (SOUZA, 2016; VITENTI, 2016).
Essa situação leva jovens indígenas a sentimentos de não-pertencimento: por um lado por sofrerem discriminação na cidade por serem indígenas, e por outro, em suas aldeias, por serem criticados pelos mais velhos pelos hábitos da sociedade envolvente que passaram a incorporar com o contato. Dessa forma, esse momento de transformação cultural os coloca em um não-lugar, que assim como diria uma jovem Ticuna: “Os mais velhos dizem que não somos mais índios e na cidade temos vergonha de dizer que somos. É como se estivéssemos vivendo entre dois mundos, em um limbo”. Essa jovem disse isso,enquanto desenhava um rosto dividido, de um lado com óculos e cabelo preso, do outro com pinturas com grafismos Ticuna e com cabelos soltos. Essa subjetividade híbrida retoma um pensamento de Viveiros de Castro que afirma que “índio não é uma questão de cocar de pena, urucum e arco e flecha, algo de aparente e evidente nesse sentido estereotipificante, mas sim uma questão de ‘estado de espírito’” (VIVEIROS DE CASTRO, 2006).
Esse cenário nos coloca uma tarefa desafiadora, por compreendermos a necessidade desenvolver um diálogo intercultural ao propor ações de acolhimento e suporte às experiências de sofrimentos psicossociais de povos indígenas, que demandam reconhecimento e valorização das sua formas tradicionais de nomeação e de lidarem com suas experiências de sofrer. Assim, destaca-se a importância das práticas de cuidado indígenas enquanto formas de cuidar e aliviar o sofrimento, pois compartilham do mesmo sistema cultural que dá sentido à experiência do sofrer.
Para se compreender a dimensão subjetiva do sofrimento de um indivíduo, família ou povo, é necessário conhecer a organização sociocultural da comunidade, já que a experiência emocional é um registro da cultura. Na medida em que o sofrimento psicossocial se remete à esfera da cultura, também a sua resolução poderá ser encontrada nesta mesma esfera.
A própria Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (PNASPI), de 2002, aponta a importância de se considerar os saberes e as práticas de cuidado indígenas para a promoção da saúde desta população, e a biomedicina deveria ser apenas complementar às práticas de cuidado de cada comunidade. A articulação entre as práticas de cuidado e os saberes indígenas com o trabalho desenvolvido pelas equipes de saúde é primordial para a promoção do bem-viver indígena.
Assim, a busca pela valorização destas práticas e saberes não deixa de ser um elemento fomentador do protagonismo indígena. Por isso, a participação de pessoas da comunidade em todo o processo de implementação e execução das ações de atenção psicossocial é de importância fundamental para que as estratégias sejam socioculturalmente contextualizadas e eficazes (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2019c).
Dar voz aos sujeitos indígenas é uma atribuição estratégica dos profissionais de psicologia ao promoverem ações junto a comunidades indígenas, que foram historicamente silenciadas em seus discursos, e não-reconhecidas nas suas formas tradicionais de viver a vida e entender o mundo.
O histórico violento de contato e colonização que se dá até hoje, seja nas disputas de terra com invasões de madeireiros, garimpeiros e latifundiários, seja por grandes empreendimentos como Belo Monte, demonstram que esses povos têm sido resistentes ao defenderem suas formas tradicionais de viver, lidando com a contradição estrutural entre sua visão de mundo e a realidade brutal a que estão submetidos. Por isso, profissionais de psicologia, ao lidarem com esses povos, devem ser bastante cautelosos na utilização de categorias ocidentais como “depressão” ou “alucinação”, por exemplo, evitando que o contato entre profissional de saúde mental e indígenas não recaia numa nova prática colonizatória, dessa vez repressora dos modos indígenas de sentir, profundamente atravessados por entidades naturais que extrapolam a visão ocidental de “mente” e “indivíduo”.
Por isso, retomo as palavras de Anastácio Guarani-Kaiowá, ao falar sobre o suicídio de jovens indígenas de sua etnia:
A gente não sofre de Depressão, a gente sofre de Opressão, opressão de nossa cultura, de nosso modo de viver Guarani (...) Nossos filhos estão assim porque tão longe da Tekohã (casa da alma), e não existe Ser sem casa". A liderança indígena ainda complementa afirmando que os indígenas necessitam de ações que promovam o Bem-Viver, termo cunhado por movimentos indígenas andinos, para que “a vida valha a pena ser vivida.
Para construirmos ações de atenção psicossocial que promovam bem-viver, é indispensável estarmos abertos a aprender e ouvir os modos de entender o mundo desses povos originários, dando voz e legitimidade a seus saberes milenares. Sobre isso, outra liderança indígena, o Cacique Biraci Brasil Yawanawá, ao ser perguntado se não tinha medo que seus filhos se afastassem da cultura tradicional ao aprenderem outras línguas como inglês ou francês, respondeu que os filhos aprenderiam muitas coisas desse mundo dos “brancos”, mas continuariam sonhando em Yawanawá. Nessa perspectiva, é importante criarmos junto aos povos indígenas espaços e tempos de expressão do inconsciente múltiplo desses povos originários dessa terra.
É a partir da compreensão da perspectiva de mundo desses povos que vislumbramos outras possibilidades de vivenciar um modo de produção sustentável e não-alienante, incluindo uma relação distinta com a terra que produz seu alimento. Povos que, apesar das diversas violências sofridas, resistem aos modos de subjetivação homogeneizantes, modos que moldam os sujeitos para tornarem-se apenas consumidores de mercadorias que não podem produzir.
Os modos tradicionais de viver desses povos têm sentidos materiais, espirituais e relacionais que podem também representar formas menos angustiantes de viver e mais conectadas com a própria história e com o lugar da humanidade, que é apenas uma parte desse organismo vivo que é o nosso planeta, como nos disse Ailton Krenak (KRENAK, 2019).
Em última análise, o diálogo entre a Psicologia e os saberes indígenas, além de amplificar as vozes e discursos dos povos originários, amplia as possibilidades de existência de modos de viver criativos e potencializadores do Bem-Viver.
*Fernando Pessoa de Albuquerque (CRP 01/19706) é psicólogo, responsável técnico pelas ações de saúde mental do Departamento de Atenção à Saúde Indígena – SESAI/ Ministério da Saúde desde 2013, doutorando em Saúde Coletiva pela Faculdade de Medicina da USP e pesquisador das temáticas interseccionais de gênero e raça na saúde mental. É psicoterapeuta corporal reichiano com experiência em atendimento clínico de jovens e adultos.
Referências:
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. [s.l.] : Editora Companhia das Letras, 2019.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Portaria de consolidação No 2, de 28 de setembro de 2017, Anexo 3 do Anexo XIV. Estabelece as diretrizes gerais para a Política de Atenção Integral à Saúde Mental das Populações Indígenas. . 2007, p. Anexo 3.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Perfil epidemiológico dos casos notificados de violência autoprovocada e óbitos por suicídio entre jovens de 15 a 29 anos no Brasil, 2011 a 2018.Boletim Epidemiológico. Brasília.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Estratégias de Prevenção do Suicídio em Povos Indígenas. Brasília: Ministério da Saúde, 2019. b. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Estrategia_Prevencao_Suicidio_Povos_Indigenas.pdf.
MINISTÉRIO DA SAÚDE. Atenção psicossocial aos povos indígenas : tecendo redes para promoção do bem viver. Brasilia: Ministério da Saúde, 2019. c. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/Atencao_Psicossocial_Povos_Indigenas.pdf.
SANTOS, Boaventura Sousa. Pela Mão de Alice: o social e o político na pósmodernidade. São Paulo: Cortez Editora, 1995.
SOUZA, Maximiliano Loiola Ponte. Narrativas indígenas sobre suicídio no Alto Rio Negro, Brasil: tecendo sentidos. Saúde e Sociedade, [S. l.], v. 25, p. 145–159, 2016.
SOUZA, Maximiliano Loiola Ponte; GARNELO, Luiza. Quando, como e o que se bebe: O processo de alcoolização entre populações indígenas do alto Rio Negro, Brasil. Cadernos de Saude Publica, [S. l.], v. 23, n. 7, p. 1640–1648, 2007. DOI: 10.1590/s0102-311x2007000700015.
VITENTI, Livia. Los pueblos indígenas americanos y la práctica del suicidio: una reseña crítica. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2016.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é. Povos indígenas no Brasil (2001/2005). São Paulo: ISA, [S. l.], p. 41–49, 2006.