Considerando que em agosto comemoramos o dia da psicóloga e do psicólogo, é importante, neste mês, celebrarmos nossas conquistas, a diversidade e a riqueza da nossa área de pesquisa e atuação profissional a partir de um resgate histórico que possibilite um encontro com os nossos desafios. E por que isso é importante? A valorização e o reconhecimento da nossa históriapermitem elaborar e compreender quem nós somosenquanto profissionais fundamentados cientificamente, para trilharmos nosso futuro.
A Psicologia é extremamente diversa, com distintos campos de atuação e pesquisa, com diferentes escolas e abordagens teóricas, o que enriquece a multiplicidade de olhares sobre o humano e sua subjetividade. A pluralidade na Psicologia, que muitas vezes é colocada como psicologias, decorre do espectro multidimensional e da historicidade intrínsecos aos objetos que buscamos apreender. Isso significa, entre outras coisas, que a história da Psicologia não pode ser desvinculada das condições políticas, econômicas, sociais e culturais de seus locais de surgimento e constituição.
Fazemos essa breve introdução, pois hoje gostaríamos de abordar, na história da Psicologia no Brasil, sobre a área da Psicologia Escolar e Educacional, principalmente no que reconhecemos como Psicologia Escolar Crítica, situando-a histórica e politicamente.
No que tange à relação entre psicologia e educação no Brasil, a história de uma está conectada, em diversos pontos, com a história da outra. As décadas de 1950 e 1960, em que houve uma expansão significativa de frentes de atuação na psicologia é contemporânea ao avanço do ensino público e das novas tecnologias de ensino que demandavam inovação nas formas de enfrentamento dos desafios escolares. Assim, antes mesmo de ser reconhecida como profissão, a psicologia já se inseria no cotidiano escolar e em outros espaços educativos, como disciplinas curriculares de alguns cursos de graduação, por exemplo. O apelo por parte dos profissionais que praticavam a psicologia educacional, à época, contribuiu também para pressionar e culminar na aprovação, em 27 de agosto de 1962, da lei nº 4.119 que regulamenta a profissão de psicólogo.
Entretanto, a Psicologia escolar e educacional desse período, como já foi amplamente debatido, foi marcada por teorias e práticas que muitas vezes corroboravam para uma educação patologizante, classificatória e excludente, com propósitos higienistas, auxiliando na normatização de caráter elitista, racista e capacitista. As décadas de 1960 e 1970 são épocas de consolidação de uma psicologia com foco no indivíduo, marcada pela terminologia de psicologia do escolar, reduzindo o campo de compreensão apenas ao estudante. A aplicação indiscriminada de testes psicológicos e a elaboração de laudos que ignoravam aspectos sociais da produção da queixa escolar, individualizaram o fracasso e culpabilizaram as crianças pobres e pretas e suas famílias pelas dificuldades vivenciadas no processo de escolarização.
No Distrito Federal, não foi diferente. Se aqui merecemos destaque na inserção da Psicologia escolar e educacional no sistema público de ensino desde 1968, nossas práticas seguem processos contraditórios com similaridade aos que marcaram o fazer e ciência psicológicos no resto do Brasil. No que concerne à psicologia em sua interface com a educação, encontramos que muitas das práticas servem a fins adaptacionista, com foco no controle, em detrimento da transformação, isto é, contribuem para a manutenção do sistema capitalista de produção e de uma sociedade marcada pelas opressões de classe, raça, gênero e deficiência. Assim, aqueles que não se adaptam facilmente a esse sistema educativo são encaminhados para avaliação psicológica, como se o problema fosse individual. Ou seja, patologiza-se aquele que aponta, em seu processo de aprendizagem, as diferenças não acolhidas nos sistemas de ensino.
Essa história não se apaga, mas o presente está em contínua disputa e, portanto, com possibilidades variadas de transformações. Para a psicologia escolar, entendemos que um desses momentos de ruptura se deu a partir do movimento de crítica feita a psicologia até então vigente. Movimento esse que se iniciou no final da década de 1970 e na década de 1980, e cujos personagens são intimamente ligados às lutas por direitos humanos no processo de redemocratização brasileiro. Psicólogas e psicólogos estavam envolvidos em movimentos sociais e sindicais, buscando melhores condições de trabalho, de saúde e de educação para a população em geral. É um momento de crítica e reformulação no país e na Psicologia escolar.
É importante pontuar esse momento, pois ele evidencia, novamente, que a psicologia como um todo não está dissociada do campo social construído em um tempo histórico específico. Muito pelo contrário. Ela se constitui a partir desse campo, ao mesmo tempo que cria conhecimentos-ferramentas que podem colaborar para a transformação dele. E é pela perspectiva da não-neutralidade, de um compromisso ético-político com a maioria da população brasileira que compreendemos que é direito humano fundamental de todos usufruir de uma educação de qualidade, verdadeiramente democrática.
Falamos da crítica à naturalização dos fenômenos psicológicos, cujas teorias possuem cunho biologizantesou psicologizantes, que pautam práticas classificatórias e de ajustamento. Crítica que escancara que os estudantes excluídos vêm, na sua maioria, de camada social mais pobre e preta da população. Crítica, enfim, que implica ir à raiz das concepções de humano e de mundo que a psicologia toma para si, situando os conhecimentos produzidos, definindo seus compromissos políticos e localizando as perspectivas teóricas que os construíram, visando à transformação.
A nossa defesa, portanto, é de que a psicologia escolar se paute no compromisso com a luta por uma educação democrática, de qualidade, que garanta os direitos de cidadania aos estudantes e profissionais dos diferentes espaços educativos. Uma psicologia escolar que contribua para a efetivação dos direitos humanos, como bem pontua nosso código de ética profissional. E compreendemos que isso só é possível com a participação do coletivo de todos os atores envolvidos. Na construção de relações escolares democráticas, e com a luta por políticas públicas que possibilitem o desenvolvimento de todos e todas, trabalhando na direção da superação dos processos de exclusão e estigmatização social (CFP, 2019).
A escolha feita neste texto é, portanto, política. Escolha essa que não nega seu passado, pelo contrário, reconhece sua história, com rupturas e continuidades, que imprimem marcas no nosso fazer profissional até hoje. Que cria armadilhas de exclusão continuamente, mas que também é luta e defesa por uma educação libertadora. No que tange à psicologia escolar, nesta data queremos celebrar a ampliação dos campos de atuação, o aumento de profissionais nas políticas públicas educacionais, as pesquisas e as intervenções que contribuem efetivamente para a emancipação dos sujeitos que constituem o cotidiano escolar; mas sem nunca esquecer que a relação entre psicologia e a educação, a psicologia e o povo, sempre é tensionada por interesses escusos para os quais devemos seguir atentos e vigilantes.
Buscando concluir, dizemos que nossa história grita até hoje que muitas vezes fazemos alianças a perspectivas excludentes, elitistase racistas. Mas assim como já fomos convocados em outros momentos de opressão a nos posicionarmos, nossa história aponta, inclusive, que nós, psicólogas e psicólogos, podemos contribuir para uma sociedade mais democrática e mais justa. Nesse ano de 2020, em que a psicologia faz 58 anos de regulamentação no país, é fundamental retomarmos nossa história, para não recairmos em antigas práticas de justificar psicologicamente o que é, na verdade, descaso com o público, com sua saúde e sua educação. Em contexto de pandemia, urge à psicologia escolar procurar compreender as condições materiais e emocionais que estejam causando exclusão e sofrimento. Nosso desejo é, enfim, que possamos contribuir, junto com os demais atores escolares, para a transformação dessa realidade.
Conselho Federal de Psicologia (2019). Referências técnicas para atuação de psicólogas(os) na educação básica. 2ª ed. Brasília: CFP.