Hoje celebramos a Psicologia, campo de cuidado da diferença. Espaço em que nos formamos continuamente para o cuidado das subjetividades em laço social; espaço em que aprendemos, transmitimos e empregamos estratégias de vinculação humana e tratamento do mal-estar.
Em certo sentido, somos apenas um dos campos da sociedade que buscam sistematizar e organizar métodos de cuidado do sofrimento. Há muitos outros, mais antigos. A história das tratativas do sofrimento funde-se à história humana mesma. As curandeiras, as rezadeiras, os confessionários, os xamãs, os médicos, as parteiras, as mães, os artistas, os revolucionários, os poetas, os caboclos – todos compõem grupos que cuidam e tratam do mal-estar humano em diferentes vieses e graus. Nós, da Psicologia brasileira, imersas nas contradições de uma sociedade bárbara, apenas tentamos aprender e nos integrar aos demais grupos que cuidam, apoiam e transformam as experiências de sofrimento, facultando-as a possibilidade de serem contadas, de serem faladas, de passarem. Integramo-nos àquelas e aqueles que repõem a lógica da vida sobre a lógica da morte; somos aquelas e aqueles românticos pragmáticos, que transformam o amor pueril em práxis organizada e articulada de combate à lógica do morticínio.
Cuidamos, nas diversas modalidades em que atuamos, da palavra. Cavamos espaço para a palavra em instituições totais, fulcramos o silêncio do hospital com histórias, cuidamos de escolas, reivindicamos o minuto. Repomos o instante íntimo do sofrimento público; e do sofrimento particular perscrutamos as causas sociais. Temos sede das histórias; arrumamos tempo para as histórias em meio às catástrofes, em meio aos desastres, em meio à guerra permanente. Nos campos minados, escutamos; nas prisões, nos becos, nas giras, nos gabinetes; somos diversos e diversas moscas zunindo nas sopas do sofrimento. Moscas atentas, centenas de milhares de psis psis psis psis psis psis azucrinando o sono do normal!
Conquistamos assento nas rodas em que se decidem os rumos da sociedade, e ali perturbamos, perturbamos, perturbamos. Longe, muito longe dessas rodas, também limpamos feridas, acolhemos crianças existentes, de raça e classe definida; metemo-nos nas tragédias concretas para verificar qual possa ser nossa utilidade ali. Inventamos estratégias públicas de cuidar da vida, e empenhamos nossas gerações na defesa dessas políticas. Defendemos e integramos o Sistema Único de Saúde, de Assistência Social, de Justiça, de Educação. Sonhamos, decidimos e fazemos o Brasil.
Em meio a uma crise sanitária, política, humanitária sem igual, respondemos dialeticamente: articulamos instituições, construímos estratégias complexas de cuidado público da sociedade; ao mesmo tempo em que acolhemos os detalhes dos relatos dos enterros sem velórios, detalhes que somente psicólogas e coveiros conhecem. Tombam camaradas neste caminho, e sua luta, sua malemolência, seu chorinho nos retiram do torpor, pois há muitos muros a derrubar. Conquistamos e garantimos direitos, relembramos à sociedade que direitos são o resultado de sangue, suor e lágrimas.
Não pretendemos parar. Não vamos descansar enquanto existe mal-estar entre nós: por isso não vamos parar nunca. Não vamos dormir enquanto houver tortura. Não vamos aceitar a existência de manicômios. Queremos a interrupção do extermínio do povo negro e nossos povos tradicionais. A Psicologia não serve para maquiar. Não temos talento para secretariar. Não somos figurinistas da injustiça. Vamos exibi-la, esgarçá-la nos detalhes das vidas gastas na bala e no sol. Reviramos a escravidão no interior dos casamentos. A exploração no interior das igrejas. Vamos nos organizar cada vez mais e melhor, para cuidarmos mais e melhor das carências reais da vida. E, assim, vamos desarticulando as estratégias mórbidas de fazer sofrer e fazer morrer.
Talvez em passados recentes e presentes nefastos tenhamos servido a outros objetivos. É possível que, uma vez por dia, desavisadas sobre nossa função social de cuidado da integridade e da fruição da vida, cedamos a um ou outro impulso de coação, de cansaço, de desistência ou de autoritarismo.
É aí que precisamos da nossa comunidade. Precisamos da sociedade, de Brasília, do Distrito Federal que nos cuide. Precisamos daqueles grupos que sabem há muito cuidar do mundo, precisamos das nossas camaradas e nossas mestras de outros campos, de outros Estados, e nossos amigos de outras manhas. E eles não nos faltam. Nessa hora nossas parcerias cuidam de nós, e facultam a nós o minuto da palavra. Aí é que somos nós as escutadas, tratadas, e logo ali já estamos prontas de novo para as batalhas do presente.
Estamos na sociedade e somos sua parte viva; estamos à espreita da espoliação e temos planos contra ela. Apostamos na cura pela palavra - não a cura dos indivíduos, mas a cura da sociedade enquanto livre associação de sujeitos e sujeitas autônomas. Estamos nas ruas, nas torres, no território; ocupando, resistindo e sendo o território. Somos cada vez maiores e mais fortes. Não vamos parar.
Que tenhamos um dia prazeroso, em que possamos celebrar uma força que recentemente descobrimos… a força de incomodar o inferno! A força de despistar o fim do mundo!
Feliz dia da Psicológa e do Psicólogo a toda a comunidade do Distrito Federal!