Dia 11 de novembro chegou e, mais do que nunca, parece ser imprescindível a discussão sobre os processos de medicalização e patologização da educação e da sociedade. A pandemia da Covid-19, além de impactar significativamente a vida cotidiana, escancarou e ampliou processos de exclusão social, que se fizeram sentir também no chão da escola. A falta de recursos para lidar com o descaso governamental, a doença, o luto, o desemprego e a fome implicam nos mais diversos tipos de sofrimento, que podem a ser transformados em patologias individuais e em processos de escamoteamento das questões sociais subjacentes. É por isso que o tema da medicalização precisa ser debatido nesse momento.
Primeiramente, é importante pontuar o que seria medicalização e patologização. É possível compreender medicalização enquanto a transformação de questões não médicas em questões cuja compreensão e solução se dariam no âmbito da medicina. Já a patologização é o processo ideológico de transformação em doenças, transtornos, condutas humanas que antes não eram consideradas patológicas. Comportamentos que antes eram tidos como normais, ou pelo menos não eram analisados pela ótica do binômio saúde-doença, agora são compreendidos como sintomas de transtorno mental.
No tocante ao contexto educativo, a medicalização e a patologização da educação podem ser entendidos enquanto o processo que envolve o enquadramento, nos mais diversos diagnósticos, de estudantes que não aprendem ou não se comportam na escola conforme o que é hegemonicamente esperado, buscando soluções no campo médico-terapêutico. São desconsiderados os fatores sociais e pedagógicos a partir dos quais a queixa escolar ganha sentido, para privilegiar uma lógica individualizante e, não raro, biologizante, da queixa escolar.
A partir dessa conceituação, cabe a pergunta: em um contexto pandêmico, o que a medicalização e a patologização da educação estão escamoteando? Para responder a essa questão, me lanço a breves considerações que se seguem.
A pandemia causada pelo novo coronavírus surpreendeu o mundo em 2020 e seus efeitos se prorrogam pelo ano de 2021. A crise sanitária teve e tem impactos significativos na vida da população, afetando não só os sistemas de saúde, mas a economia, a política, a educação. Essa situação afetou a todas e todos, entretanto de formas amplamente distintas. A desigualdade brasileira se fez perceber nas diferentes possibilidades de acesso ao cuidado e prevenção ao contágio, no acesso ao tratamento, em quem pode ou não ficar em casa, em quem perdeu o emprego, em quem conseguiu estudar de forma remota e até no número de mortes nos distintos recortes populacionais. Essa desigualdade tem raça, classe, gênero e idade e foi perceptível também nos efeitos educativos durante a pandemia.
No que tange à educação, a suspensão das aulas presenciais exigiu mudanças bruscas na rotina de estudantes e familiares, bem como de profissionais da educação. Enquanto muitas escolas particulares, devido a condições prévias, conseguiram rapidamente manter práticas educativas utilizando-se de recursos tecnológicos, o mesmo não foi visto na educação pública, que demorou a adaptar-se. Muitos foram os debates sobre acesso de estudantes e professores à internet e a aparelhos tecnológicos, e como, em uma tentativa de manutenção de vínculos escolares de modo apressado e mal planejado, seria possível ampliar as desigualdades educacionais.
Apesar de todas as dificuldades e adaptações necessárias, têm sido possíveis experiências de aprendizado em contexto pandêmico. Cabe ressaltar, entretanto, que muitas vezes o sucesso obtido nos processos de ensino durante a pandemia advém do esforço individual e coletivo de educadores e da comunidade escolar que se desdobram para tentar garantir minimante a aprendizagem e o acesso ao currículo estabelecido por parte de seus estudantes.
Esse processo de transferência de responsabilidade estatal para a comunidade educativa também pôde ser visto no ensino remoto emergencial, bem como no momento de retorno presencial. A comunicação precária com profissionais da educação e familiares por parte dos tomadores de decisões, as mudanças bruscas de planejamento e a falta de suporte ampliam a sobrecarga e as angústias daqueles que estão na base do processo educativo.
A contextualização da situação educacional em momento pandêmico é importante como base para a contínua reflexão e conscientização da atuação profissional daqueles que estão nas escolas, o que inclui profissionais de Psicologia. Muitas podem ser as demandas que surgem no contexto educativo nesse momento, entretanto, cabe pontuar que possíveis queixas de “não aprendizagem” ou “mau comportamento” não estão descoladas da realidade vivida pela maioria da população brasileira trabalhadora e suas filhas e filhos.
Enquanto profissionais que podem contribuir no acolhimento e desenvolvimento de recursos subjetivos para lidar com o sofrimento, nós psicólogas e psicólogos temos muito o que fazer nesse momento. O sofrimento é real, mas as medidas que tomamos frente a ele contribuem para elaborá-lo e superá-lo ou apenas para dar-lhe um verniz mais aceitável? Não se trata de negar a necessidade de encaminhamentos para profissionais que compõe a rede de atenção em saúde e assistência: situações complexas requerem muitas vezes medidas complexas e intersetoriais. Mas precisamos refletir profundamente o que sustenta nossos encaminhamentos e quais suas consequências.
Uma das possibilidades de desmedicalização do nosso olhar frente às dificuldades enfrentadas no chão da escola é o trabalho colaborativo entre os profissionais da educação e toda a comunidade escolar. A constituição de espaços de troca e reflexão sobre a realidade comunitária e escolar pode permitir a construção coletiva de estratégias e possibilidades de enfrentamento, em que todos se sintam partícipes e responsáveis pela superação desse momento difícil. Além disso, fortalece uma educação verdadeiramente democrática e que reconhece as potencialidades dos diferentes atores escolares.
Concluo, então, essa breve reflexão retomando a defesa de que profissionais da educação, incluindo psicólogas e psicólogos escolares, se proponham a um constante processo de reflexão crítica que amplie a compreensão sobre os fenômenos vivenciados, de forma a não normalizar situações de exclusão decorrentes das políticas implementadas no contexto pandêmico. A situação educativa atual de mudanças bruscas de planejamento, de falta de participação nas decisões sobre os rumos da educação e das devidas condições materiais para execução do trabalho, acarreta sobrecarga para os profissionais da educação, restringindo e dificultando a ocorrência de momentos formativos e reflexivos. Isso pode contribuir para uma atuação impensada por parte de profissionais, que muitas vezes não se percebem como estando a serviço da adaptação dos sujeitos a um “novo normal” que amplia exclusões já vividas por muitos estudantes, especialmente as pessoas pobres, pretas e com deficiência.
Por Camila Maia, coordenadora da
Comissão Especial de Psicologia e Educação
#DescreviParaVocê: a imagem colorida conta com as informações básicas do texto acima, a marca do CRP 01/DF e a ilustração de um comprimido com um chapéu de formatura.