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PSICOLOGIA E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: 21 DE MARÇO – DIA INTERNACIONAL DE LUTA PELA ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL E DIA NACIONAL DAS TRADIÇÕES DAS RAÍZES AFRICANAS E NAÇÕES DO CANDOMBLÉ

PSICOLOGIA E RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS: 21 DE MARÇO – DIA INTERNACIONAL DE LUTA PELA ELIMINAÇÃO DA DISCRIMINAÇÃO RACIAL E DIA NACIONAL DAS TRADIÇÕES DAS RAÍZES AFRICANAS E NAÇÕES DO CANDOMBLÉ


Um olhar a partir do filme "Vênus Negra"

O Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial foi instituído pela Organização das Nações Unidas em memória do massacre ocorrido em 21 de março de 1960, em Sharpeville, na África do Sul. Na ocasião, um protesto realizado pelo Congresso Pan.Africano contra a Lei do Passe, documento que cerceava a locomoção da população negra naquele país, resultou na polícia abrindo fogo contra uma multidão desarmada, deixando 69 mortos e dezenas de feridos. A data também foi recentemente instituída no Brasil como o Dia Nacional das Tradições das Raízes Africanas e Nações do Candomblé, uma ação estatal de enfrentamento ao racismo religioso.

Com o intuito de contribuir para a reflexão sobre o tema, o Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF) compartilha o artigo de autoria da psicóloga Márcia Maria da Silva, conselheira vice-presidenta e coordenadora da Comissão de Raça, Povos Indígenas e Povos Tradicionais do CRP 01/DF. No texto, a psicóloga reflete sobre o filme “Vênus Negra”, que aborda algumas faces do racismo, como a desumanização de pessoas negras.

Confira a seguir:

Vênus Negra, dirigido por Abdellatif Kechiche, tunisiano radicado na França, ambientado no século XIX, relata a história verídica de Saartje Baartman, magnificamente interpretado pela atriz Yahima Torres, cubana, professora de espanhol em Paris. Sartje, uma mulher negra nascida no Vale do Rio Gamtoos, na atual província do Cabo Oriental na África do Sul, na esperança de virar uma artista de renome na Europa, se deixa convencer por Cezar Hendrick, irmão de seu patrão, a partir de sua terra de origem para Londres, em 1810. 

No entanto, nos shows circenses idealizados por Cezar, ela aparece para o público numa jaula como um animal selvagem, com uma roupa coladíssima, que deixa em evidência as particularidades de seu corpo. Nos shows era instigada a sair da jaula com cabresto, como se estivesse sendo domada. Muitos espectadores gritavam obscenidades, além de tocarem seu corpo. 

Após denúncia da sociedade filantrópica African Association, Saartje foi levada a um tribunal da Inglaterra. No entanto, nega as acusações contra Cezar, afirmando fazer os shows de livre e espontânea vontade, inclusive afirmando ser sócia de seu algoz. O tribunal resolve arquivar o caso, mas o acórdão não foi satisfatório, devido a contradição com outras investigações. Assim, os espetáculos em Londres são cancelados.

Saartje então é vendida em Paris para Olivier Gourmet, domador de animais. Olivier, ainda mais inescrupuloso que seu antigo dono, começa a promover festas privadas, onde além de domada, Saartje passa a ser molestada sexualmente. Logo é cobiçada pelo anatomista Georges Curvier, interessado em provar que o homem negro estava mais perto dos macacos do que do homem civilizado. 

O anatomista que não consegue devassar o corpo de Saartje em vida o fará após a sua morte. Saartje Baartman morre, em 29 de dezembro de 1815, de uma doença inflamatória indeterminada. Assim, o domador de animais vende seu cadáver a Curvier que, após dissecá-lo, expõe no Museu do Homem, em Paris, o corpo moldado em gesso; o esqueleto, os órgãos genitais e o cérebro, conservados em formol. A exposição ficou em exibição até 1974. No entanto, quando Nelson Mandela se tornou presidente da África do Sul, solicitou formalmente à França a devolução dos restos mortais de Saartje Bartman. Conseqüentemente, em 3 de maio de 2002, seus despojos mortais foram enterrados na sua terra natal, Gamtoos Valley.

A análise do filme parte do pressuposto de que a compreensão das relações entre a mente e o corpo sempre suscitou discussões filosóficas, científicas e teológicas ao longo dos séculos. Trata-se de uma reflexão sobre o monismo e o dualismo, e aos eventos internos e externos como elementos influenciadores da personalidade e das ações humanas. 

Freud (1856-1939) propôs a ruptura com a visão do determinismo biológico substituindo-o pelo determinismo psíquico; nesse aspecto, a forma do sujeito se relacionar consigo mesmo e com o mundo é resultado da sua história individual e dos seus vínculos culturais. 

O filme fomenta no espectador a espera de uma reação de Saartje, mas os danos psíquicos dos preconceitos sofridos ao longo de sua história foram mais fortes. Verifica-se no seu comportamento uma inferioridade introjetada que a impede de esboçar qualquer reação. Enquanto as mulheres à sua volta cantavam e dançavam, Saartje não demonstrava estar confortável com a sua vida, com as festas, com o sexo, com os outros e nem consigo mesma, enfim, a sua vida era pesada.

Cabe ressaltar que o que garante o “ser” para um sujeito é sua visibilidade – para outro sujeito. Saartje não tinha visibilidade como pessoa, pois para o público a configuração diferenciada do seu corpo, negro, com nádegas salientes, taxado como anormal e feio, a colocava mais próxima do animal do que da raça humana, e para seu parceiro não passava de um objeto em meio a tantos outros objetos com os quais ele obtinha vantagens sexuais e financeiras. 

Infere-se que Saartje não conseguiu constituir-se como sujeito da sua história. Sua pulsão de morte era mais forte que a pulsão de vida; a compulsão pela bebida alcoólica, a apatia frente a vida e o assujeitamento a situações degradantes fizeram-na alienar-se, fugir da realidade. Essa foi a forma que Saartje encontrou para sobreviver, pois em situações de sofrimento as pessoas usam mecanismos de defesa para dar conta da realidade.

O corpo de Saartje era um corpo sem alma. Como prostituta, não demonstrava minimamente sentir prazer ou estar presente como pessoa, pois parecia mais uma múmia em um ato indesejado. Durante as festas no bar que frequentava, era uma mulher alienada quanto ao que ocorria em volta. Para ela, viver era apenas manter precariamente a sua vida.

O clímax do filme ocorre no final, pois quando deduzimos que aquela mulher usada como objeto durante a sua curta existência já havia sido maculada de todas as maneiras, seu corpo é vendido para o cientista Curvier. O cientista que não havia analisado totalmente a mulher em vida, o fará após a sua morte, pois ela havia recusado expor sua nudez para os cientistas que desejavam analisar a sua genitália. 

Após sua morte, o corpo de Saartje é medido, analisado e finalmente dissecado; consta registro do tamanho das nádegas, do clitóris, dos lábios e dos mamilos; e foram conservados em formol o esqueleto, os órgãos genitais e o cérebro. Ali, fica materializada a visão da sociedade da época ao considerar aquele corpo como o de um animal. Aliás, Curvier estudava os animais e havia dissecado vários deles. 

Uma das faces do racismo é a desumanização de pessoas negras, ou seja, despojá-las das características humanas. Acrescente-se a isso considerar pessoas negras desprovidas de inteligência, bondade, criatividade, beleza e civilização.
Nos raros momentos em que Saartje se atreveu a ser ela mesma provou a sua capacidade e sensibilidade de tocar como uma verdadeira artista, tanto é assim que Curvier anotou na sua teoria que “Saartje era uma mulher inteligente, com excelente memória e fluente em holandês.”

As sociedades de todos os tempos tiveram os negros na condição de pessoas de menos-valia. O filme expõe a necessidade de estudar, analisar e discutir a dimensão dos danos sociais, psíquicos e emocionais do racismo. Enfatiza ainda a necessidade da tomada de consciência dos negros para que nasça um potencial de reivindicação e de superação do sistema colonial e racista ainda presentes no século XXI.

#DescreviParaVocê: o card colorido apresenta um destaque para a data de 21 de março, com sugestão de leitura do artigo sobre o filme “Vênus Negra”. Aparece a capa do filme e a marca gráfica do CRP 01/DF.



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