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CRP 01/DF ENTREVISTA: CRP 01/DF CONVERSA COM A PSICÓLOGA E ATIVISTA DO MOVIMENTO NEGRO, CECÍLIA VIEIRA

CRP 01/DF ENTREVISTA: CRP 01/DF CONVERSA COM A PSICÓLOGA E ATIVISTA DO MOVIMENTO NEGRO, CECÍLIA VIEIRA


 

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CRP 01/DF conversa com a psicóloga e ativista do movimento negro, Cecília Vieira

Pesquisadora teceu severas críticas à Psicologia brasileira: “Enquanto estivermos na perspectiva de uma negativa, num lugar de negar que exista um problema, não faremos o enfrentamento do racismo.”

O Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF) conversou com a psicóloga Cecília Maria Vieira, que também é formada em Pedagogia, é especialista em Políticas Públicas pela Universidade Federal de Goiás - UFG, mestra em Educação também pela UFG e doutoranda em Comunicação pela Universidade de Brasília (UnB). Considerada referência na temática de relações étnico-raciais dentro e fora da academia, a professora Cecília conta detalhes e repercussões de suas pesquisas, e enfatiza a importância de a Psicologia apurar seu olhar nas tratativas de enfrentamento ao cenário de racismo na sociedade brasileira. Confira a entrevista:

 

Como se deram seus estudos na temática etnico-racial dentro da Psicologia, o que já foi conquistado e o que ainda é um desafio na área?

Cecília Vieira: A Psicologia em si, durante muito tempo, não se ocupou desse debate das relações étnico-raciais. Há uns 10, 15 anos (eu me formei em 2004 na PUC/GO), você não tinha essa discussão. Então, hoje o arcabouço teórico que nós temos numa construção do debate das relações étnico-raciais realmente é algo notável e penso que foi um crescimento exponencial. Por outro lado, muitos de nós estudantes de Psicologia nos sentimos órfãos, pois não tínhamos essa discussão. Ter hoje, por exemplo, uma Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) (Anpsinep), ter hoje o debate em redes sociais de psicólogas(os/es) negras(os/es) é realmente uma conquista. 

Eu me lembro que, assim que eu me formei, coloquei como objetivo estar sempre participando, pelo menos uma vez ao ano, de um evento da Psicologia. Aí, um dos eventos que eu sempre participei foi o Congresso Brasileiro Psicologia: Ciência e Profissão. Aí eu chegava nesse congresso, que é considerado um referencial dentro da Psicologia, a gente basicamente não tinha a discussão. Só tinha algumas coisas pingadas ali. Em 2007, 2008, 2009 nós começamos a pensar em nos organizar enquanto psicólogas e psicólogos negros. Aí começam as primeiras articulações do debate, com outras pessoas na academia discutindo isso, e a gente então começa esse processo. Em 2010, a gente teve um primeiro evento, que foi o primeiro encontro na Universidade de São Paulo (USP) de pesquisadoras(es) negras(os/es), que demandou vários outros eventos preparatórios que a gente fez. Inclusive, Goiás fez um evento preparatório, eu estava na organização desse evento e a gente conseguiu levar a maior delegação do evento e isso foi muito importante, porque a gente estava com Cida Bento e Wade W. Nobles fazendo essa discussão e foi um passo muito decisivo para a gente se encontrar, se agregar e poder fazer essa discussão. E aí depois, ainda em 2010, a gente começa a construção da primeira referência das relações etnico-raciais, que eu também tenho o privilégio de participar como umas das colaboradoras, mas um documento que ficou engavetado durante muitos anos. Esse documento começa a ser construído em 2010, a gente sabe o fluxo de se construir as referências técnicas, mas – não por acaso – o documento que foi relacionado às questões etnico-raciais demorou quase dez anos pra sair, em 2017. 

Eu costumo trazer isso como um exemplo de racismo institucional, pois do primeiro momento do lançamento do documento até a consulta pública, houve uma enxurrada de questionamentos dizendo que era um documento desnecessário; no próprio fluxo da construção do documento também queriam fazer uma inversão, que eu também considero racismo institucional, pois normalmente depois da consulta se chama um Radoc (Relatório Anual de Atividades Docentes) e disseram que nós é que teríamos que fazer isso, e nós dissemos: “não, a gente quer a mesma construção dos outros documentos”. E, nessa guerra, levamos vários anos para de fato termos o documento sendo lançado, efetivamente.

Tudo isso são conquistas, mas conquistas lutando sobretudo sob a perspectiva do racismo institucional dentro da Psicologia, uma ciência que tem ainda uma dívida com a população negra, já que, em determinados momentos, a Psicologia legitimou processos de exclusão da população negra e outras minorias. Logo, são conquistas sim, mas nós entendemos que ainda temos uma longa caminhada para entender o compromisso social da Psicologia com a população negra. Os desafios são enormes.

 

Da sua perspectiva, qual seria então o papel da Psicologia na luta antirracista?

CV: O papel da Psicologia seria de fazer o enfrentamento dessa negação institucional que ela mesma faz do não racismo. Nós ainda temos muitas(os) profissionais que acreditam que não há racismo, a julgar pelo momento político que passamos. Muitos colegas acreditam que não existe racismo. Muitas pessoas, quando conseguem chegar num atendimento psicológico e que trazem essa questão, temos colegas nossos que dirão: “não, não existe racismo” e isso desconfirma o sofrimento dessa pessoa. 

Então eu acho que a primeira questão é a Psicologia dar, de fato, centralidade para esse tema. Para mim, esse tema ainda não ganhou centralidade no debate da Psicologia no Brasil. Falta romper com essa questão de se encarar e reconhecer que existe esse racismo, para depois fazer o enfrentamento, porque, enquanto estivermos na perspectiva de uma negativa, num lugar de negar que exista um problema, não faremos o enfrentamento do racismo. Então, para mim, enquanto ciência e enquanto categoria ainda não fizemos esse enfrentamento.

Nos 60 da Psicologia, eu fui umas das homenageadas e eu falei no meu discurso sobre o enfrentamento ao racismo, o vídeo é bonito… mas isso é para todas(os/es) profissionais? Enquanto categoria e quem está numa gestão, a gente talvez tenha uma noção melhor, mas numa perspectiva individual de todas(os/es) as(os) psicólogas(os/es) entenderem a centralidade da importância desse debate a gente ainda tem uma longa caminhada. A julgar, por exemplo, a partir das análises políticas que nós fazemos e raciocinar o quanto que isso está presente no nosso cotidiano, ainda há uma negativa das pessoas para enfrentar um fato que é o racismo à brasileira e o não enfrentamento da Psicologia nesse sentido. Como o racismo é algo que nos constitui, o Florestan Fernandes tem uma fala que o brasileiro tem preconceito por ter preconceito. Então, na realidade, a Psicologia também está inserida nesse sistema e ela não tem olhado para isso. A Psicologia teve algum evento que de fato deu centralidade para esse tema? Temos algumas campanhas, uma coisa pontual ou outra, mas de fato colocar o racismo como central, inclusive das mazelas da sociedade, não. Por isso, ainda há um longo caminho para percorrermos juntas(os/es).

 

Parte de seus estudos é centrada na ideia da necessidade de uma educação antirracista para o enfrentamento efetivo do racismo. Você poderia comentar quais contribuições a Psicologia poderia dar nessa temática?

CV: A educação antiracista tem dialogado e bebido muito sobre o que o movimento negro educador tem produzido. A professora Nilma, pedagoga, disse que o movimento negro desde o momento pós-abolição, tem construído um pedagogia antiracista. No meu trabalho de mestrado “Diálogos e silêncios na implatação da lei 10.639/2003”, eu faço uma análise sobre como o movimento social negro desde o pós-abolição construiu uma pedagogia antirracista que é desconhecida nos cursos de pedagogia e possivelmente também na Psicologia, mostrando como é que o movimento negro deu centralidade à educação em todo o envolvimento, desde o teatro negro experimental a todas as interfaces, mostrando que a educação seria a mola impulsionadora dessa mudança na sociedade. O movimento negro fez isso a partir de ações como cursos que ofertou para pessoas, como por exemplo, empregadas domésticas no Rio de Janeiro, que não eram alfabetizadas. Ele realizou essa ação com base nos primeiros indivíduos negros que ingressaram na universidade e isso deu origem aos primeiros núcleos de discussão sobre as relações étnico-raciais. Assim, nós deixamos de ser objeto de discussão por outras pessoas e começamos a falar por nós mesmas(os/es) sobre nossos problemas sociais. Ou seja, nos tornamos sujeitos dessas pesquisas, o que tem contribuído para a construção de uma pedagogia antirracista.

No entanto, essa pedagogia antirracista ainda é desconhecida, tanto na educação, quanto na Psicologia. Nesse sentido, é importante que essa construção comece desde a base da educação infantil, mostrando às crianças negras algo que é seu direito, algo que muitas vezes elas não experienciam, que é o direito de vivenciar a infância. Embora saibamos que o conceito sociológico de infância varia de acordo com cada sociedade, muitas crianças negras brasileiras não têm a oportunidade de vivenciarem as suas infâncias. Vivenciar a infância significa ter acesso às escolas. Se tem um lugar por onde quase todo mundo da sociedade passou é a escola e, muitas vezes, as crianças negras são privadas da oportunidade de vivenciarem suas infâncias dentro desses espaços escolares. A pressão às vezes é tão grande que faz com que essas crianças se evadam do espaço escolar.

Nesse contexto, a educação antirracista, começando desde a educação infantil, enquanto direito dessas crianças de terem seus corpos e subjetividades sendo respeitados nesse espaço, é muito importante. É por isso que temos a Lei 10.639/2003 e a Lei 11.645/2008, que alteram nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), mostrando a importância de incluir a cultura e a história africana nesse espaço [as referidas leis alteram a legislação anterior para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”]. No meu doutorado, especificamente, estou tentando entender como as crianças negras e não-negras constroem suas subjetividades no enfrentamento do racismo dentro de um ambiente escolar. Minha tese é a de que, independentemente de essa criança ter uma escola que faz esse diálogo das relações étnico-raciais e de a criança ter uma família, o fato de nós, negras(os/es), termos passado pelo processo escolar e termos sobrevivido significa que criamos ações para fazermos o enfrentamento do racismo. Nesse sentido, estou investigando quais são os processos de resistência e existência que as crianças têm construído dentro dos espaços escolares na contemporaneidade. É obrigação da escola realizar práticas promotoras da igualdade racial desde a educação infantil, é obrigação da família também cuidar disso, mas nem sempre é o que acontece. Por outro lado, as crianças vão para a escola todos os dias e enfrentam esse racismo. Estou então investigando quais são as formas de enfrentamento que elas desenvolvem. Para isso, estou conversando com as crianças, pois precisamos aprender a ouvir o que elas têm a nos dizer. A ideia é ouvir crianças negras e não negras para entender como elas têm construído seus processos de subjetividade – especialmente as crianças negras. A escola tem um papel fundamental, porque é direito dessas crianças serem acolhidas nesses espaços.

Levantamentos que eu fiz, de 2017 a 2022, sobre teses e dissertações mostram que ainda precisamos construir esses espaços, pois, infelizmente, a escola ainda é uma fonte de sofrimento psíquico para as crianças negras. Por outro lado, as pesquisas mostram que, quando há um trabalho interessante desenvolvido nas escolas, as crianças se sentem bem. Portanto, a importância disso é construir uma política pública efetiva, sobretudo investindo na formação de professoras(es). Se não investirmos nessa capacitação, não avançaremos.

 

Como tem sido esse trabalho de Psicologia antirracista nas escolas e quais são os desafios de se implementar ações de combate ao racismo no ambiente escolar?

CV: Eu faço parte de um coletivo chamado "Geninhas", que é um movimento em homenagem a uma mulher negra de Florianópolis chamada Dona Geni, a primeira mulher negra a dirigir uma escola de samba na cidade. O nome desse coletivo é uma homenagem a ela. Esse movimento está na Universidade Federal de Goiás (UFG), dentro do Núcleo de Estudos Africanos, Afrodescendentes e Indígenas (NEADI). Dentro desse núcleo, temos o movimento "Geninha em Movimento", que é um projeto de extensão. Nele, nós temos trabalhado visitando escolas e oferecendo formação para professores. Somos uma equipe de cerca de 15 pessoas e geralmente realizamos trabalhos não apenas com professoras(es), mas também de contação de histórias para as crianças. Conseguimos ver o impacto quando temos uma equipe de mais ou menos 8 pessoas negras interagindo com as crianças. Certa vez, estávamos contando uma história e uma colega disse: "Cecília, essa menina tem o cabelo igual ao seu, uma coroa igual à sua". Essa menina se levantou e pediu para tirar uma foto. Uma vez, levei minha sobrinha e ela ficou impressionada, perguntando por que aquela criança veio abraçá-la. Respondi que era porque a criança se via nela, porque ela também era uma menina negra. Na nossa perspectiva do afro-afeto, conseguimos perceber isso com muita frequência. 

É importante para as crianças negras verem outras pessoas negras protagonizando um espaço de potência. Quando chegamos, transformamos todo o ambiente, trazemos enfeites e literatura infantil. Isso modifica o espaço e essa deveria ser uma prática constante no cotidiano das crianças. De vez em quando ouvimos comentários como: "nossa, nossa escola está tão bonita". Colocamos vários cartazes com mulheres negras e elas perguntam quem são elas. Explicamos que são Carolina Maria de Jesus, Elza Soares, e isso modifica o espaço escolar, e as crianças negras têm o direito de vivenciar isso. É algo que passa pelo esforço da escola, mas, sobretudo, pela formação de professoras(es), que é igualmente importante, pois as(os) docentes precisam receber formação adequada para realizar um trabalho efetivo nas relações étnico-raciais, para que possamos romper com essa crença de que essa discussão vai acontecer só na ocasião do 13 de maio ou só em 20 de novembro. As relações étnico-raciais e o racismo são situações cotidianas e precisam ser trabalhadas todo dia. Então, precisamos nos questionar: no cartaz da minha escola, todas as crianças conseguem se ver? Na minha festa há representatividade? Então todas as ações educativas precisam ser pensadas a partir das relações étnico-raciais e do combate ao racismo no cotidiano das instituições. E isso é um desafio.

O curso de pedagogia, por exemplo, tem aula de Psicologia. Mas essa Psicologia dialoga com essa temática? A Psicologia está presente em várias áreas do conhecimento. Quando ela faz a interface com outras disciplinas, ela consegue fazer o diálogo étnico-racial com a economia, com o direito? Quando falamos sobre a aplicabilidade da lei, não é apenas para a educação básica, mas para todos os espaços. Quando eu vou dar uma aula de Psicologia da propaganda, eu trago esse assunto?  Quando dou aula de Psicologia na contabilidade, consigo trazer isso? São nessas interfaces que eu acho que muitas vezes as psicólogas e os psicólogos não entendem seu papel. Quando estou na aula de assistência social e dou aula de Psicologia, eu trago isso. Você já reparou que a maioria das pessoas que busca assistência social são negras? Na Psicologia hospitalar, você sabia que grande parte dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) são pessoas negras? Portanto, a Psicologia tem muito a contribuir, seja no espaço escolar, seja no espaço da sociedade, como um profissional que possui uma perspectiva formada para lidar com as relações étnico-raciais.

#DescreviParaVocê : a imagem colorida conta com parte do conteúdo textual acima, com a marca gráfica do CRP 01/DF e com ícones de curtir, comentar, compartilhar e salvar, além da fotografia da entrevistada Cecília Vieira, uma mulher preta de cabelos black-power curtos, presos com uma tiara colorida, colar de miçangas azuis, roupa verde e óculos de grau, sentada em frente ao jardim do ICC sul, onde fica Instituto de Psicologia da UnB.



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