PSICOLOGIA E DIREITOS HUMANOS
21 de março: Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial
Neste Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial, o Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF) convidou a socióloga e escritora Fabiane Albuquerque, autora do livro “Cartas a um homem negro de amei”, e o economista e escritor Mário Theodoro, autor do livro “A sociedade desigual: racismo e branquitude na formação do Brasil”, para compartilharem as reflexões estimuladas pela data.
No vídeo, os escritores abordam os compromisso ético de enfrentamento do racismo, os componentes subjetivos da discriminação racial no Brasil, a importância do olhar sobre interseccionalidade que envolve as vivência de mulheres negras e as contribuições da obra “Um Defeito de Cor”, de Ana Maria Gonçalves, homenageada este ano pela escola de samba Portela no Carnaval do Rio de Janeiro.
As contribuições antirracistas da obra são também abordadas no artigo “Um Defeito de Cor”, de autoria da conselheira vice-presidenta do CRP 01/DF, Márcia Maria da Silva, publicado originalmente no jornal “O Miraculoso” e sobre o qual sugerimos a leitura a seguir.
Um defeito de Cor
Artigo de Márcia Maria da Silva, psicóloga vice-presidenta do CRP 01/DF, publicado originalmente no jornal “O Miraculoso”, em 2013.
O livro “Um Defeito de Cor”, da escritora Ana Maria Gonçalves permite ao leitor uma imersão no que foi o período da escravidão no Brasil. Na atualidade, vive-se um relativo tempo de paz que talvez não propicie aos indivíduos pensar o quanto o processo escravocrata foi cruel. Imagine uma pessoa em sua residência assistindo à novela das nove e sendo arrancada da comodidade de seu lar e levada para uma travessia difícil, rumo a um país estranho de uma língua diferente da sua, onde não terá amigos, família, parentes, enfim.
A escravidão roubou esperanças, cortou laços familiares e religiosos, e por fim despertou nos negros vindos da África um sentimento de não pertencimento. Essa herança cultural não evaporou na linha do tempo, mas permanece viva na psiqué dos negros da diáspora, afinal a população negra da atualidade é o somatório dos antepassados.
O livro relata a história de Kehinde, batizada no Brasil como Luísa Gama. Kenhide viu os guerreiros Adandozan matarem seu irmão e violentarem sua mãe, assim ela juntamente com sua avó e sua irmã Taiwo viajam até Uidá, lá permanecendo por um curto período de tempo, pois são capturadas e embarcadas em um navio negreiro. A avó desesperada resolveu segui-las, no entanto, nem a avó nem a Taiwo conseguem completar a viagem devido à insalubridade em que viviam os escravos nesses navios que cruzavam o Atlântico.
Kenhide foi comprada na primeira semana que chegou ao Brasil. Seu proprietário possuía uma fazenda nos arredores de Salvador. Ela começou a trabalhar primeiro como dama de companhia e depois no canavial. Tão logo começou a encorpar, encheu os olhos de cobiça sexual do seu dono que a levou de novo para a Casa Grande. Prometida a um escravo, não chegou a casar, pois seu Senhor queria ser o homem a tirar a sua virgindade; o que ocorreu após seu namorado tentar fugir da fazenda. Kenhide foi estuprada na frente do namorado, que teve o membro cortado e também foi violentado e estuprado pelo proprietário da fazenda.
Assim, Kenhide fica grávida e dá à luz seu filho Banjokô Ajamu Danbiran. Nesse período ela relata a luta dos escravos em busca da liberdade. Os quilombos dos quais ela tinha notícias e o trabalho árduo dos escravos para conseguir comprar a carta de alforria. Ela passou a ser escrava de ganho, ou seja, uma escrava que trabalhava nas ruas de Salvador vendendo quitandas. Após comprar sua liberdade, casa-se com Alberto, um comerciante português, e tem um filho chamado Omotunde Adeleke Danbiran. Tempos depois, Banjokô, seu primeiro filho, morre em um acidente doméstico com oito anos de idade.
Kenhinde junto a Alberto abre uma padaria. No entanto, os negócios não prosperam como esperado e, nesse mesmo período, ela e Alberto se separam. Algum tempo depois ela decide vender e fabricar charutos, um negócio que logo se torna rentável. Na mesma época, ela se aproxima da religião e dos costumes de África e acaba se envolvendo numa rebelião, que ficaria conhecida na história como A Revolta dos Malês. Visada por ser uma africana livre, acaba sendo presa, porém consegue fugir da cadeia e sair de Salvador.
Ao retornar a Salvador tempos depois, fica ciente de que Alberto, alcoólatra e viciado em jogo, vendeu seu filho como escravo para saldar uma dívida de jogo. A partir daí, encontrar o filho torna-se seu único objetivo. Na esperança de encontrá-lo, vai para o Rio de Janeiro e São Paulo e não obtém o sucesso esperado, quando então resolve voltar para a África. Kenhide volta à África, no navio conhece um negro inglês com quem se casa e tem um casal de gêmeos e finalmente pode ser mãe, pois os filhos crescem em sua companhia. Já idosa, volta ao Brasil na esperança de enfim encontrar com seu filho nunca esquecido e sempre amado, porém morre na travessia de volta ao Brasil.
O que era um defeito de cor? Não era permitido aos negros, pardos e/ou mulatos exercerem qualquer cargo importante na religião, no governo ou na política. Os 125 anos de liberdade não permitiram aos negros brasileiros superarem o defeito de cor, pois eles continuam ausentes dos espaços de visibilidade e poder. Assim, na Câmara dos Deputados, dos 510 deputados, apenas 8% são negros; no Senado Federal apenas um senador se declara negro; entre os ministros de Estado, apenas a Secretária Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR/PR [Dados do período de publicação do artigo, disponibilizado em 2013].
A psicanálise expõe que é necessário ao indivíduo recordar, repetir e ressignificar. Assim, observo como de extrema importância para a população negra esse mergulho na literatura que conta a sua história. Além de trazer à consciência como foi sofrido o período da escravidão no Brasil, permite um encontro com esse passado continuamente negado, pois a literatura brasileira não contemplou a história dos negros no Brasil e nem na África.
Estar a par dessas histórias contribui para a formação intelectual e emocional do negro, pois esse passado precisa ser colocado, conhecido, trabalhado e, se preciso, ressignificado. O ser humano torna-se pleno quando é capaz de aceitar as nuances de sua história. No livro fica claro a coisificação do negro, pois não eram donos de nada, nem mesmo do próprio corpo, assim fica clara a subjetividade do negro que está estruturada em um passado que ele talvez ignore, mas que está presente em um pertencimento coletivo que a visibilidade contemporânea faz questão de ratificar.
O negro vive uma vulnerabilidade social e psicológica que contribui para o seu adoecimento psíquico, pois descobre a todo o momento que é alguém que pode ser julgado e agredido, que é objeto de olhares e discursos, que é estigmatizado por esses olhares e discursos. Eribon (2008) afirma que a injúria se perpetua e se reproduz sem cessar, provocando feridas, submissões e revoltas.
Kenhide voltou ao seu país, mas não viveu feliz na África porque as lembranças do Brasil a incomodaram até o fim de sua existência. No Brasil, era para todos uma africana e, na África ,era para os africanos uma brasileira, e pelos seus relatos isso teve um impacto na sua existência, pois queria e sentia necessidade de pertencer a um lugar, quando na verdade não se sentia nem brasileira, nem africana.
A leitura deste best-seller provoca sentimentos variados: revolta, decepção, raiva, tristeza, alegria, compaixão, amor, esperança, enfim o seu intelectual e emocional ficam extremamente alterados. A obra é um presente para a população negra e não negra, pois descreve detalhadamente os voduns africanos e as festas católicas da época; o regime escravocrata e a formação da sociedade urbana e dos processos políticos.
Enfim, é a trajetória de uma mulher, negra, escravizada e mais tarde liberta, lutando pela construção de uma identidade. É uma história instigante que tem uma personagem de um carisma e uma força surpreendentes, que observo presentes nas mulheres negras da atualidade que, apesar de serem discriminadas duplamente - racismo e sexismo -, demonstram sabedoria, disposição e alegria.
#DescreviParaVocê: miniatura de vídeo legendado e com janela de Libras no qual a socióloga e escritora, Fabiane Albuquerque, e o economista e escritor, Mário Theodoro, abordam reflexões sobre o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial.