| 11/11: DIA DE LUTA CONTRA A MEDICALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA SOCIEDADE |
Psi, pra que serve seu diagnóstico?
Por Rubens Bias
Homossexuais e transexuais eram consideradas pessoas doentes até recentemente. A justificativa para diagnosticar e tratar era de que elas sofriam com suas vidas e, portanto, necessitariam ser consideradas doentes para serem ajudadas. A retirada da lista de doenças da Organização Mundial de Saúde foi tão importante e simbólica para os movimentos sociais, que o dia em que ocorreu, 17 de maio, foi escolhido para representar o combate à homofobia. Isso aconteceu em 1990. Situação semelhante ocorreu com as pessoas trans. Apenas em 2022 a transexualidade deixou de ser considerada doença.
A alegação era a de que a ciência, a saúde mental e os saberes psi iriam auxiliar a aliviar esse sofrimento. Um suposto direito ao diagnóstico, ao laudo e ao tratamento sustentava essas práticas que inferiorizavam e excluíam pessoas não heterossexuais e não cisgêneras. Até hoje, esses mesmos argumentos são reciclados quando vozes críticas apontam diagnósticos cada vez mais totalizantes e consumos mais exagerados e inconsequentes de psicotrópicos em outras situações.
Um dos tratamentos disponíveis para que, por exemplo, homens parassem de se relacionar com outros homens, era a lobotomia, uma cirurgia que consistia em cortar as conexões entre os lobos frontais do cérebro e o resto do encéfalo, com o objetivo de alterar comportamentos ou curar doenças mentais. Como efeitos, algumas pessoas ficavam grogues, incapazes de se comunicar, andar ou se alimentar. Era considerado um tratamento “científico”, que ganhou o Nobel de Medicina em 1949 e foi realizado até 1981. Claro, vale reforçar novamente: profissionais de saúde, com seus diagnósticos e tratamentos, estariam apenas “ajudando” aquelas pessoas que estariam sofrendo.
Essa história de luta pela aceitação social de formas de vivenciar a sexualidade é apenas um exemplo da importância do combate à medicalização da educação e da sociedade, que é celebrado no dia 11 de novembro no Distrito Federal.
Medicalização, para quem ainda não está familiarizada(o/e) com o termo, é o processo em que as questões da vida social, sempre complexas, multifatoriais e marcadas pela cultura e pelo tempo histórico, são reduzidas à lógica médica, vinculando aquilo que não está adequado às normas sociais a uma suposta causalidade orgânica, expressa no adoecimento do indivíduo. Assim, questões como os comportamentos não aceitos socialmente e as performances pessoais que não atingem as metas estabelecidas, são retiradas de seus contextos, isoladas dos determinantes sociais, políticos, históricos e relacionais, passando a ser compreendidas apenas como uma doença, que deve ser tratada.
A medicalização está presente em diversos contextos de discriminação e opressão, além desse exemplo das populações LGBTQIAPN+. Situações semelhantes acontecem com mulheres, com pessoas negras, e seguem a todo vapor com pessoas com deficiência e com crianças. Os diagnósticos e tratamentos que estamos oferecendo, enquanto profissionais de saúde, estão reforçando opressão ou buscando emancipação?
Vamos a outro exemplo: Byung-Chul Han, o filósofo da impactante obra “Sociedade do Cansaço” afirma que deixamos de viver em uma sociedade disciplinar para viver em uma sociedade do desempenho. Ele defende também que essa sociedade produz três formas de adoecimento principais: a depressão, o burnout (esgotamento por estresse de trabalho) e o Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH). Quem faz atendimento clínico sabe o quanto essas características estão presentes entre as pessoas que procuram ajuda. Segundo Byung-Chul, esses sintomas seriam indicativos do esgotamento de uma humanidade que está em guerra consigo mesma, de uma espécie de fracasso de um sujeito que se vê como empresário de si mesmo.
O que estamos fabricando quando produzimos e reproduzimos esses diagnósticos como se fossem manifestações biológicas e individuais? Nosso objetivo nesse processo é recuperar os sujeitos para que voltem a desempenhar adequadamente? Essa será a contribuição da Psicologia e dos nossos fazeres profissionais para tornar o mundo um lugar melhor?
E pra finalizar, um terceiro exemplo, de uma prática comum entre profissionais psi: As postagens em que divulgamos diagnósticos, explicando como identificar transtornos e adoecimentos. Buscando captar clientes, dizemos a nós mesmos para nos tranquilizar “essas pessoas que eu vou alcançar com minha postagem estão com prejuízos severos em algum aspecto de suas vidas e sequer sabem; com o diagnóstico e o tratamento elas passarão a viver mais e melhor”.
No entanto, quando olhamos para o resultado da soma dessas postagens medicalizantes e patologizantes e do impacto no “público-alvo” e na sociedade como um todo, o que parece emergir é a banalização completa do processo diagnóstico. A sensação que se tem é a de que transformamos a arte de compreender o sofrimento de um sujeito em uma espécie de horóscopo inconsequente, no qual transtornos são oferecidos num buffet virtual para que cada indivíduo escolha o que melhor lhe cabe, lhe explica, lhe justifica.
Allen Frances, coordenador do DSM-4 e autor do livro “voltando ao normal”, analisa o papel do processo diagnóstico que foi banalizado pelo manual que ele mesmo coordenou e que ainda hoje é considerado intocável por profissionais que o utilizam. Lembrando que foi escrito antes mesmo da explosão desse fenômeno de criadores de conteúdo psi. Algumas de suas falas podem servir perfeitamente para compreender aquilo que estamos produzindo: “O aumento de diagnósticos de transtornos está engolindo a normalidade”; “infelizmente a maioria dos especialistas sofre de um conflito de interesses intelectual que os desvia para a inflação diagnóstica”; “os especialistas tornam-se fanáticos que realmente amam seus diagnósticos de estimação e querem vê-los crescer.”
Qual é então o papel de profissionais de Psicologia quando temos uma epidemia de diagnósticos, produzida por influencers e tiktokers, impactando no nosso fazer clínico? Qual o papel dos nossos Instragrams profissionais nesse estado de coisas? Divulgar até que cada pessoa possa se identificar com dois ou três transtornos? Até que todas se sintam adoecidas, necessitando de ajuda profissional? Estamos produzindo mais opressão ou mais liberdade? Estamos produzindo mais saúde ou mais doença?
Que este 11 de novembro possa ser um convite à reflexão e um chamado à ação de uma Psicologia que produza emancipação, questionamento e saúde.
Rubens Bias é psicólogo, servidor no Ministério da Saúde, membro do Centro Brasileiro de Estudos em Saúde e do Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade. Trabalhou com tema de medicalização junto a escolas públicas do DF e participou da construção de políticas públicas de combate à medicalização no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) e no Ministério da Saúde.
#DescreviParaVocê: a imagem colorida conta com uma chamada para leitura do artigo, além da marca gráfica do CRP 01/DF e de uma fotografia do autor, Rubens Bias, um homem branco com barba e cabelos curtos e escuros, usando óculos de grau e roupa social; ao fundo, uma parede com azulejos de Athos Bulcão.