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SÉRIE PSICOLOGIA E LUTA DOS POVOS INDÍGENAS: ENTREVISTA COM A PSICÓLOGA VANESSA TERENA

SÉRIE PSICOLOGIA E LUTA DOS POVOS INDÍGENAS: ENTREVISTA COM A PSICÓLOGA VANESSA TERENA


Confira

Em alusão ao Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, o Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF) publica esta semana uma série de entrevistas concedidas por profissionais indígenas que atuam como referência na área da saúde mental, garantia de direitos e promoção da diversidade em diversas regiões do País.

Nesta entrevista, convidamos a psicóloga Vanessa Terena (CRP 14/07450-9) a compartilhar suas vivências com as(os) psicólogas(os/es) e população do Distrito Federal. Vanessa Terena é indígena psicóloga, conselheira do Conselho Regional de Psicologia do Mato Grosso do Sul (CRP 14/MS), integrante da Articulação Brasileira de Indígenas Psicólogas (ABIPSI) e trabalha questões de racismo e identidade indígena.

Confira:

1) Em 7 de fevereiro, celebramos o Dia Nacional de LUTA dos Povos Indígenas, palavra que acompanha os mais de 300 povos indígenas já reconhecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Brasil, sobretudo quando consideramos o histórico de um Estado estruturado a partir de um modelo exploração predatória do meio ambiente e desigualdade social. Na sua avaliação, qual a importância dessa data para a Psicologia e qual a relevância de não limitar as reflexões propostas por ela somente ao dia 7 de fevereiro?

Todas as datas que servem não como uma comemoração, mas como uma reflexão mesmo, são muito importantes para a gente entender qual é a realidade dos povos indígenas no Brasil hoje. São mais de 305 povos, existem povos que ainda não têm contato com a sociedade brasileira, existe toda uma estrutura do próprio Estado que a Constituição obriga para cuidar dessas culturas, desses idiomas, enfim, dessas existências. Então, compreender a realidade dos povos indígenas do Brasil nessas datas, como 7 de fevereiro, 21 de janeiro, 19 de abril, é extremamente importante para a Psicologia. Não adianta dar parabéns pelo Dia do Indígena, porque daí a gente vai lembrar parabéns pelo quê? A nossa existência é fantástica? Certamente. Mas a nossa resistência é desumana.

2) Estamos vivendo um contexto em que conquistas de direitos importantes estão sob ameaça diante do avanço de grupos supremacistas no Brasil e no mundo. Quando falamos de povos indígenas em nosso País, estamos falando de diferentes culturas, de mais de 270 línguas distribuídas por todo o território nacional e de uma diversidade de demandas e cosmovisões que não se encaixa em um padrão de ser humano único e universal ou em um modelo de sociedade que desconsidera as singularidades das pessoas e das coletividades. Qual o lugar da Psicologia nesse cenário?

É o lugar do não tentar entender, mas aceitar. Porque quando a gente pega a Psicologia, por exemplo, para falar sobre questões que são mais, entre aspas, que são “inatas ao ser humano”. O porquê que a gente ainda pensa na caixinha do humano desenhado em 1900 e alguma coisa. Por que o humano não muda sendo que a cultura muda constantemente pelo próprio movimento da vida? A Psicologia precisa se atualizar no sentido de compreender que o humano é diferente de acordo com seu território, de acordo com as suas vivências, de acordo com a sua cultura e suas crenças. Então aquele ser humano que nós vemos ainda nas universidades, ele não existe o ser humano no Brasil. É muito complexo, por exemplo, assim como todos os outros lugares no mundo, mas no Brasil a gente pega uma pessoa do Nordeste e uma pessoa do Sul, e eles têm existências diferentes, simbologias diferentes, compreensões diferentes se você pega uma pessoa do Norte.

3) Um dos temas que vêm ganhando destaque no noticiário diante dos impactos das mudanças climáticas é o racismo ambiental e como diferentes grupos sociais estão mais ou menos vulneráveis a essa realidade. Como esse tema tem sido observado em seu trabalho junto a populações indígenas no Brasil, em sua região, e de que forma os desafios enfrentados pelos povos indígenas impactam a saúde mental dessas comunidades?

Olha, racismo ambiental, quando a gente pensa em populações indígenas, é muito enraizado. Por quê? Nós somos territórios, nossos corpos são territórios. O que fazem no nosso território, fazem consequentemente para os nossos corpos. Então, por exemplo, os Yanomamis, com a questão do garimpo: tanto o território deles está adoecendo com o mercúrio, os não humanos, os animais, as matas, os rios estão morrendo, quanto os corpos deles também. Quando dizem, por exemplo, que nós indígenas somos seres não civilizados ou que não somos evoluídos, é justamente por isso, porque a evolução e a civilização é baseada no consumo, no capitalismo. E daí quando a gente valoriza a árvore, as matas, os rios, no sentido de existência. É como se nós nos sentássemos em cima dos maiores tesouros do País. E aí é que começa toda uma luta contra os nossos direitos, contra as nossas existências propriamente ditas. E daí a gente vai falar de saúde mental, e o próprio conceito de saúde para pessoas que não têm água potável, para pessoas que não têm segurança alimentar, para pessoas que não têm educação pensada a partir de nós, para nós, que não tem saúde. Por mais que a SESAI_ [Secretaria de Saúde Indígena, responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas e todo o processo de gestão do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS) no Sistema Único de Saúde (SUS)] seja um uma instituição, um braço muito forte, ela não dá conta de todos os indígenas do Brasil, nem dentro do território, e a gente vai conversar sobre os que estão fora dos territórios reconhecidos pela FUNAI [Fundação Nacional dos Povos Indígenas], ela também não tem esse acesso. Mas a saúde indígena, ela não é pensada de nós, para nós.

4) Como a Psicologia pode ser utilizada como ferramenta para fortalecer as identidades culturais indígenas e promover o bem-estar?

Desconstruindo a imagem do índio. O índio, essa palavra generalista, racista também, porque somos mais de 305 povos, e quando a gente fala índio, automaticamente na cabeça da pessoa, ela vai lembrar do índio que ela viu no livro de história, do índio que ela viu na novela, do índio caricato, que nada tem de semelhante com as nossas existências. Então a Psicologia precisa desconstruir isso nos bancos das universidades de fato, falar o que nós somos de fato, incentivar produções de pessoas indígenas para potencializar esse trabalho. Ela precisa nos ouvir, ela precisa de fato nos ouvir, e aí é muito engraçado porque a Psicologia tem esse orgulho de ser a ciência da escuta, mas é uma escuta seletiva, então ela pode, ela tem inúmeras habilidades, potencialidades para estar nessa luta ao nosso lado, mas aí ela precisa descer desse lugar do conhecimento para passar para o lugar do aprendizado. Aí sim ela vai ser uma grande aliada. Já tem sido, esse movimento já tem se iniciado, mas ainda temos uma longa estrada pela frente.

5) Como ser uma psicóloga indígena influencia sua abordagem profissional? Que desafios ou preconceitos você enfrentou em sua trajetória acadêmica ou profissional, e como os superou? Há algum momento marcante em sua vivência como psicóloga indígena que ilustre a força e a resiliência de seu povo?

Bom, ser uma indígena psicóloga influencia muito a minha profissão. Por quê? Porque eu consigo aliar a minha existência à minha ciência. Só que eu não consigo fazer o caminho de volta. E aí eu acho que é por isso que eu me envolvo tanto dentro da política da Psicologia. Porque eu, como uma indígena, compreendo a Psicologia. Mas a Psicologia não me compreende como uma indígena. Então, esse ato de transcrever não cabe no caminho de volta. Influencia muito na minha escuta, na minha visão holística das coisas e das pessoas. Acho que entender o ser humano parte muito da minha base, da minha identidade indígena. Os desafios e os preconceitos totais. Porque a Psicologia ainda é branca em sua maioria. Organizacional também. Quem pensa a Psicologia ainda são pessoas não indígenas. Os preconceitos dos mais diversos. De estar saindo de mesas, de eventos. E a pessoa chegar para mim e falar “Nossa, você é tão bonita. Você não parece índia. Você é tão inteligente. Você fala tão bem.” E a pessoa está convencida de que isso é um elogio muito grande. E aí, a primeira coisa que eu sempre penso é: Eu, uma mulher mais de 30 anos, formada, tão experiente, e passo por isso. E aí, automaticamente, eu lembro da minha avó. Que tinha que sair do território para fazer suas compras. E que, com certeza, passava por coisas muito piores. Então, combater o racismo tornou-se também um objetivo pessoal. E o momento que mais me marcou na minha prática como psicóloga, como indígena psicóloga, foi na Assembleia do Povo Terena, na Aldeia Bananal, em 2024. Quando um indígena Kadiwéu que reside numa aldeia com um acesso muito difícil, uma estrada muito ruim, ele mora na parte de Serra do Mato Grosso do Sul, então é um acesso muito difícil. E aí ele vem parabenizar a fala da mesa da saúde. No momento em que ele me olha e fala e pergunta por que eles não podem ter um psicólogo na aldeia deles, porque eles também precisam, eles também estão ansiosos, eles também estão deprimidos, eles também têm casos de suicídio. E o porquê que eles não merecem a Psicologia. Aquilo foi horrível pra mim, horrível, porque acho que foi um dos momentos em que eu entendi que a Psicologia não é pra todos, infelizmente, né? E esse todos inclui grande parte do meu povo, dos meus povos, né? Então foi um momento assim em que eu percebi a luta e a força daquele homem, e eu percebi a fragilidade da Psicologia como ciência, de não estar em todos os territórios, de não ser pensada para todos os corpos.

#DescreviParaVocê: card colorido no qual aparece uma foto da psicóloga, a marca gráfica do CRP 01/DF e uma chamada para leitura da entrevista completa.



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