Por Tatiana Lionço*
Publicado originalmente em 21/01/2020
Neste dia de combate à intolerância religiosa é importante reafirmarmos o compromisso ético-político da Psicologia brasileira com os direitos humanos e com a democracia. Faz-se necessário refletir coletivamente sobre a diversidade social, moral e religiosa, bem como sobre aspectos da violação de direitos individuais e coletivos baseados em hegemonias morais pretensamente universais. Proponho iniciarmos recuperando o sentido da laicidade no exercício ético da profissão, para então sinalizarmos características da intolerância em nosso país, seja esta contra religiões, mas também as discriminações baseadas em preceitos de fé religiosa.
Nosso Código de Ética Profissional estipula, em seu artigo segundo, que é vedado à(o) psicóloga(o) "induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais”. A partir desta asserção, podemos depreender a laicidade como princípio ético fundamental ao exercício qualificado da profissão.
Laicidade e Psicologia
A laicidade é um princípio de organização das práticas de governo (sejam estas normativas/legais ou a oferta de serviços por meio de políticas públicas) fundamental para a garantia da democracia e do respeito aos direitos humanos. A laicidade emerge na Modernidade em concomitância com direitos relacionados aos Estados liberais e democráticos, quais sejam: a liberdade de consciência ou de crença, incluindo a liberdade religiosa, bem como a liberdade expressão de tais convicções junto à coletividade.
Nesse sentido, sendo a Psicologia uma profissão regulamentada legalmente e formalmente reconhecida pelo Estado democrático brasileiro, a laicidade é um princípio também organizador das práticas e epistemológicas psicológicas, denotando compromisso com a proteção da diversidade sócio-cultural e subjetiva, primando pela garantia dos direitos humanos.
Racismo religioso
Em um país de dimensão continental como o Brasil, a diversidade social é complexa e permeada por distintas práticas culturais, implicando diversidade de crenças religiosas. Tendo sido constituído em uma história de colonização marcada por violações persistentes e pela precarização das condições de vida de determinados grupos sociais, o Brasil selou uma hegemonia moral religiosa cristã em decorrência deste processo de imposição da lógica social e cultural europeia. No entanto, sobreviveram às tentativas de extermínio práticas culturais e religiosas indígenas e africanas, sobretudo a partir do sincretismo religioso com o catolicismo. Também devemos considerar que sobreviveram às tentativas de aniquilamento cultural diversas práticas religiosas das comunidades que escaparam ao contato com colonizadores, bem como aquelas religiosidades de outras etnias que passaram a emigrar para o continente americano, tais como as orientais, muçulmanas, judaicas, etc.
A história da colonização brasileira foi marcada pela escravidão dos povos indígenas e aqueles oriundos da África, bem como pelo processo de catequização e conversão religiosa forçada como condição para a sobrevida destes povos. As narrativas europeias sobre as práticas indígenas e africanas foram marcadas pelo imaginário católico, que descreveu tais ritos sociais a partir da ótica da demonização. Tais representações desqualificadoras baseadas no eurocentrismo perduram até hoje no imaginário social, reincidindo na discriminação contra grupos sociais historicamente marginalizados ou mesmo dizimados.
Nesse sentido, é possível identificar que um dos principais problemas relacionados à intolerância religiosa no Brasil é o racismo religioso, sobretudo contra as religiões de matriz africanas, tais como a Umbanda e o Candomblé. A desqualificação moral de tais sistemas de crença e ritos socioculturais, associada à demonização de tais sujeitos, tem ocasionado práticas de violação de direitos e mesmo de destruição dos espaços de culto religiosos.
Apesar de podermos constatar que a intolerância religiosa no Brasil é marcada pelo racismo estrutural, há de se considerar também que a intolerância religiosa pode assumir diferentes facetas, não se restringindo apenas a esta lógica estrutural da desigualdade tal como imposta no processo de desumanização e escravidão dos povos africanos. As religiosidades indígenas são em grande parte ignoradas pelo conjunto da sociedade brasileira. Também é possível observar intolerâncias religiosas entre diferentes vertentes do próprio cristianismo. A reivindicação da laicidade marcou, por exemplo, a primeira constituição brasileira, quando da proclamação da República, pois grupos protestantes tinham interesse em emigrar para o Brasil mas o caráter oficial do catolicismo limitaria sua autonomia subjetiva e de organização de práticas sociais e comunitárias.
Quando a fé é odiosa
No Brasil contemporâneo, podemos identificar uma crescente onda de associação da fé religiosa a práticas de discriminação contra grupos sociais. Estas intolerâncias baseadas em preceitos de fé religiosa atingem não apenas outras religiosidades, mas também grupos sociais organizados politicamente em movimentos que reivindicam reconhecimento de suas especificidades para a garantia de direitos. Os movimentos sociais de mulheres e de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT), assim como os movimentos sociais dos povos indígenas e negros, vem sofrendo retaliação moral baseada em preceitos de fé. Suas pautas, sejam estas por direitos sexuais e direitos reprodutivos, sejam as reivindicações pelo direito à própria autonomia cultural e simbólica e pelo direito à terra, têm sido objeto de narrativas preconceituosas baseadas no uso estratégico da fé cristã.
Nesse sentido, podemos identificar o uso estratégico do cristianismo como moeda de troca eleitoral e como motor da justificação moral da violência contra estes grupos sociais. Em nossos debates e embates políticos, feministas têm sido associadas ao risco civilizatório, ecoando a prática de extermínio de mulheres tal como empreendida na Inquisição, na transição para a era Moderna. Homossexuais e pessoas que não reiteram os estereótipos de gênero também tem sido satanizadas e associadas ao risco social, tal como foram punidas pessoas nos tribunais inquisitoriais modernos. A reivindicação do direito à terra, por sua vez, denota a atualidade da mobilização dos povos originários indígenas e dos povos negros que resistiram à escravização em quilombos para a garantia de sua autonomia cultural, moral, e mesmo religiosa.
Os ataques morais e físicos contra feministas, LGBTs, negra(os) e indígenas no Brasil, em grande parte, se baseiam na presunção de superioridade moral do patriarcado cristão. Devemos considerar que a desigualdade social entre homens e mulheres, bem como a subalternização de determinadas formas de viver a condição de homens e de mulheres, é uma construção histórica que, no entanto, não cessa de evocar o imaginário cristão para naturalizar e recusar a crítica social necessária à revisão das injustiças. Por sua vez, a infantilização dos povos indígenas e a satanização de seus ritos, assim como a demonização das comunidades de terreiro e dos povos tradicionais quilombolas, serve a interesses coloniais de destituição de autonomia cultural e de acesso à terra.
Psicologia, religiosidades, espiritualidade: crítica ao fundamentalismo religioso
Como nossa categoria de classe profissional dispõe de mecanismos de deliberação democráticos, tais como os congressos da Psicologia que acompanham o processo eleitoral para a gestão dos conselhos regionais e federal, é possível identificar posicionamentos históricos da Psicologia em relação à diversidade religiosa e às intolerâncias religiosas.
A própria Psicologia brasileira vinha sofrendo ofensivas baseadas em preceitos de fé religiosa, tais como as tentativas de sustar normativa ética que veda a patologização e reversão da homossexualidade para a heterossexualidade normalizada. Isso fez com que a categoria se mobilizasse para o debate sobre intolerância religiosa e laicidade. No VIII Congresso Nacional da Psicologia (CNP), realizado em 2013, a categoria deliberou que se deveria reafirmar a laicidade da ciência psicológica, promovendo debates e eventos a este respeito, bem como que o Sistema Conselhos reafirmasse a defesa da laicidade do Estado e das políticas públicas.
Desde então tem sido mobilizados debates sobre o tema, bem como foi instituído Grupo de Trabalho sobre Laicidade pela Assembleia de Políticas, da Administração e das Finanças (APAF), outra instância de deliberação democrática da Psicologia brasileira, pois decide coletivamente sobre a organização de nossos conselhos profissionais. Este Grupo de Trabalho produziu, em 2013, Posicionamento do Sistema Conselhos de Psicologia para a questão da Psicologia, religião e espiritualidade1. Neste documento, a Psicologia afirma reconhecer a diversidade social, moral, cultural e religiosa como um valor a ser protegido por meio de nosso exercício profissional. Ainda, reconhece que há segmentos sociais que não aderem a religiões, devendo a Psicologia também respeitar e proteger as subjetividades que não se orientam moralmente por meio de dogmas religiosos, sem ônus moral para tais sujeitos e grupos sociais.
Diferenciando espiritualidade de religiosidade, neste documento a Psicologia brasileira reconhece que a espiritualidade consiste em dimensão fundamental da subjetividade, já que implica a produção de sentido sobre a existência e sobre o desafio da vida em coletividade. Tal dimensão de busca e produção de sentido, no entanto, pode ou não estar associada a sistemas de crença religiosos. A religiosidade, portanto, se refere à adesão a sistemas de crença compartilhados por grupos sociais, implicando também a adesão a liturgias e regras morais próprias a tais dogmáticas.
Para finalizar, neste documento produzido em 2013 está afirmado também que a Psicologia, por respeitar a diversidade moral, religiosa e cultural, não deveria ser conivente com formas autoritárias de imposição de crenças e práticas, tais como aquelas engendradas por fundamentalistas religiosos. O grande desafio em nosso país e na nossa profissão é conciliar o respeito à diversidade social à recusa dos fundamentalismos. Isso significa que devemos nos abrir para a diferença moral e cultural, desde que tal sistema de crenças não vise agredir outros grupos e indivíduos a partir da presunção de superioridade moral. Não podemos aceitar intolerâncias contra religiosidades, assim como também é inadmissível do ponto de vista ético aceitar intolerâncias baseadas em preceitos de fé religiosa.
*Tatiana Lionço é doutora em Psicologia e professora da Universidade de Brasília (UnB).
NOTA: O documento pode ser acessado por meio do link: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2014/06/Texto-aprovado-na-APAF-maio-de-2013-Posicionamento-do-Sistema-Conselhos-de-Psicologia-para-a-quest%C3%A3o-da-Psicologia-Religi%C3%A3o-e-Espiritualidade-8-2.pdf