O dia 2 de abril é reconhecido pela Organização das Nações Unidas (ONU) como o Dia Mundial de Sensibilização para o Autismo, data de esforço internacional pelo compartilhamento de informações sobre o grupo de doenças conhecido como Transtornos do Espectro Autista ou TEA.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 1% da população mundial tem autismo. Somente no Brasil são mais de 2 milhões de brasileiros autistas que, mesmo com a alta incidência de casos no país, ainda lidam com o preconceito e a dificuldade em obter diagnóstico precoce e tratamento adequado.
O CRP 01/DF Entrevista convidou a psicóloga Maria Izabel Tafuri para falar sobre o tema, abordando sua experiência na área, a atuação da Psicologia, as principais dúvidas sobre os TEA e as possibilidades de tratamento para as pessoas diagnosticadas no espectro autista.
Maria Izabel Tafuri possui graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (1980), mestrado em Psicologia pela Universidade de Brasília (1990), doutorado em Psicologia Clínica pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Universidade de São Paulo (2002) e pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (2015). É autora da tese “Dos sons à palavra: explorações sobre o tratamento da criança autista” e das dissertações “Autismo infantil precoce e nome próprio: um estudo exploratório teórico-clássico acerca do sistema de nominação” e “Transtorno da fala em crianças autistas”. Atualmente é professora Associada do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília e pesquisadora do Laboratório de Psicopatologia e Psicanálise. É psicanalista e tem cursos de especialização na área de Psicologia, psicanálise e clínica do bebê e da criança. Desenvolve pesquisas nos eixos: a saúde mental materno-infantil (construção da parentalidade); a clínica psicanalítica e o acompanhamento terapêutico com crianças autistas e as inter-relações entre a Fenomenalidade da Vida de Michel Henry e as psicopatologias.
O que é o autismo?
Isso depende muito do contexto em que falamos. Se estamos no contexto da Psiquiatria clássica e da Psicologia científica natural, vamos ter nos livros que o espectro do autismo é uma doença crônica que pode ser percebida nas crianças de até 3 anos de idade, ou seja, de 0 a 3 anos de idade é possível fazer o diagnóstico de autismo se o indivíduo apresenta as características que são basicamente a inabilidade de responder à interação social (no caso dos bebês, por exemplo, não olhar para a mãe quando ela está amamentando, não olhar quando é chamado pelo nome, não brincar com o móbile que está no bercinho, essas relações de estar em contato com o outro e se fazer entender pelos gestos e outras formas de comunicação que os bebês utilizam). Uma outra questão séria é a ausência de fala. São crianças que demoram muito para começar a falar e o mais importante: elas não falam e também não se comunicam. A gente tem crianças que não falam e se comunicam por meio dos gestos, mas as crianças dentro do espectro autista não se comunicam nem pelos gestos e, portanto, o atraso da fala é extremamente aparente. Quando chegam a falar, é uma fala mais mecanizada, não tem muita sonoridade e muitas vezes eles falam só o final de uma palavra solta no ar, sem contexto ou então ficam fazendo muitas repetições daquilo que eles escutam, mas a repetição é fora do contexto. Essa é uma segunda característica. E a terceira característica seria a mesmice, que são os comportamentos muito repetitivos, crianças que têm manias muito evidentes. Por exemplo: todo dia, se entrar dentro do carro, tem que sentar na mesma cadeirinha. Se for deitar, tem que deitar na mesma cama, tem que vestir a mesma roupa, não aceita outra situação a não ser aquela à qual ele ou ela se habituou. Então pelos livros da Psiquiatria e dessa Psicologia positivista, as crianças que apresentam essas características por mais de seis meses e desde o início da vida ou a partir do primeiro ano e meio de vida (porque o grande número das crianças é assim, a partir do primeiro ano de vida que essas características começam a ficar mais evidentes), aí os médicos atestam o diagnóstico do espectro do autismo. A experiência que nós temos de uma Psicologia humanista, da psicodinâmica e da psicanálise é que essas características podem ser transformadas ao longo do tratamento. Podem ser e podem não ser. Então a gente entende o autismo não como uma patologia do sistema nervoso central simplesmente, mas como um sintoma que pode estar relacionado com as questões sociais, as questões familiares e alguma questão orgânica também, mas a experiência clínica da gente mostra que muitas crianças que chegam por volta de um ano e oito meses, um ano e nove meses com essas características e começam a fazer o processo psicoterápico, em muitas dessas crianças as características desaparecem e elas entram em um desenvolvimento normal. Em outras crianças não, essas características permanecem. E a nossa grande angústia clínica, de nós pesquisadores e clínicos, é que a gente não consegue determinar em qual grupo essa criança se encontra quando ela vem para nós com um ano e oito meses, por exemplo. A gente não sabe se vai permanecer ou se vai transformar. Então só a clínica que vai mostrar para a gente. Vamos pensar no futuro da criança a partir dos resultados que ela apresenta no tratamento psicoterápico e nos tratamentos também associados, que são geralmente a fonoaudiologia, as terapias ocupacionais, os tratamentos de psicomotricidade que são necessários. Muitos tratamentos ao mesmo tempo. E essa criança que chega com três, quatro anos, muitas delas entram para as escolas como se nada tivesse acontecido, começam a se relacionar normalmente, algumas apresentam alguma característica ali um pouquinho diferente, mas não é uma coisa que vai criar deficiência na criança de jeito nenhum e a clínica é isso: depende da visão que a gente olha para a criança. Nós temos verdades e não uma única verdade.
O profissional de Psicologia atua em que perspectiva no que se refere ao autismo: poderíamos falar de tratamento do autismo ou a abordagem é voltada a facilitar a inserção social do indivíduo identificado no espectro autista?
As duas coisas. Pela minha experiência, precisamos das duas coisas, do tratamento mesmo, que é a criança adquirir capacidade psíquica para pensar em si mesma (essa é a principal ação da nossa área). Como podemos dar para a criança um ambiente psicoterápico no qual ela possa pensar sobre ela mesma, que ela possa se constituir como sujeito sendo autista, com síndrome de Down, sendo uma criança com deficiência mental, seja lá que diagnóstico for? Qual o papel do psicólogo? Propiciar condições para essa criança pensar nela mesma, independente se ela tem déficit neurológico ou se ela tem déficit sensorial ou algum atraso psicomotor. Todos os tratamentos são coadjuvantes, mas aí vem a questão da inclusão. Quando a criança está nesse tipo de desenvolvimento, ela já foi várias vezes excluída, ela já não foi aceita em alguma escola, ela não sente capacidade de brincar com outras crianças. Muitas vezes ela tem interesse, mas não consegue brincar com outra criança. Ela se sente excluída. Essa criança precisa de uma ajuda a mais para se incluir no meio social. Então o tratamento deve ser individualizado e, ao mesmo tempo, em grupo. No trabalho da inclusão a gente usa muito o acompanhante terapêutico. Nas escolas hoje está sendo chamado de tutor ou de educador social, na área pública. Isso muda muito de nome. Antigamente, por exemplo, era o amigo qualificado. Mas é essa pessoa com formação que vai ajudar a criança a ser incluída naquele ambiente no qual ela está. Precisamos desses dois profissionais: do psicólogo que está na clínica e do profissional que está dentro da escola ajudando a criança a ser incluída no parquinho onde ela mora, no convívio com as outras crianças, vai ao cinema com ela para ela ser incluída naquele ambiente social maior.
Como lembrou, a Lei 12.764/2012 confere ao autista o acesso à educação e ao ensino profissionalizante e, em casos de comprovada necessidade, a pessoa com transtorno do espectro autista incluída nas classes comuns de ensino regular teria, segundo a lei, direito a um acompanhante especializado. A regulamentação da lei veio com o Decreto 8.368/2014, que estabelece, entre outros pontos, que no âmbito do Sistema Único de Saúde o Ministério da Saúde promoverá a qualificação e o fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial e da rede de cuidados de saúde da pessoa com deficiência no atendimento das pessoas com o Transtorno de Espectro Autista. Como você avalia o acesso a esses direitos hoje no Brasil e no Distrito Federal?
Hoje a área pública está mais dentro da lei do que as escolas privadas. As escolas privadas apresentam uma resistência muito grande de profissionalizar os seus professores e de contratar esses acompanhantes terapêuticos. Não é uma questão financeira, é uma questão social e cultural porque essas pessoas não contratam pessoas especializadas para acompanhar crianças especiais e, quando fazem, pegam um ajudante de professor e o clínico que trabalha com a criança é quem, na prática, orienta essa pessoa que foi contratada pela escola para estar com a criança. Isso quando a gente consegue que a escola contrate. Muitos pais acabam recorrendo ao Ministério Público para obrigar a escola a contratar porque já estão cansados de pedir. Já na área pública, o Ensino a Distância (EaD) tem oferecido muitos cursos de formação para os professores. Há ainda uma dificuldade grande para o próprio professor se matricular nesses cursos porque muitas vezes tem um professor em Ceilândia que tem que vir para o Plano Piloto em duas horas, pois a escola só dá duas horas para ele fazer o curso, que é o tempo de ele vir e voltar. Então ele não tem condição de fazer o curso. Tem que melhorar a oferta dessa formação dentro das escolas mesmo. Vamos imaginar que, em vez dos professores irem para o centro buscar orientação, são os professores do EaD que teriam que ir para dentro das escolas para oferecerem essa formação ou pelo menos as escolas que são vizinhas, que se reunissem para que um professor do EaD fosse fazer a formação desses professores lá. Então falta a formação do professor da sala de aula e também do educador social, que hoje é contratado para estar com a criança, mas não recebe formação porque o orientador da escola, o diretor da escola e os professores também não receberam orientação. Então quem vai orientar essas pessoas? Somos nós, clínicos. Aí entra o psicólogo clínico de novo. O psicólogo clínico cuida da criança, orienta o professor, orienta o educador social, orienta o acompanhante terapêutico.
Se não tenho condições de pagar pelo tratamento oferecido pelo psicólogo clínico particular, como devo proceder? O atendimento ao autista na rede pública é feito exclusivamente pelos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)?
Hoje nós temos os CAPS e há algum tempo se falava muito no Centro de Orientação Médico Psicopedagógico (COMPP). Não sei exatamente como está a situação da Associação dos Amigos dos Autistas do Distrito Federal (AMA-DF), que tinha um centro no Riacho Fundo, e temos as clínicas-escola, como o CAEP da Universidade de Brasília, onde atuo. Lá oferecemos atendimento a crianças de baixa renda. É um grupo de pesquisa e atendimento clínico. Algumas outras faculdades também oferecem esse serviço com direcionamento teórico diferente, o comportamental no UniCEUB, na Católica tem algumas vagas, outra que oferece vagas de fonoaudiologia gratuita para criança autista. A UniEuro apareceu com vagas para exames neurológicos e neupsicológicos para criança com suspeita de autismo, mas é muito pouco ainda para a grande demanda que a gente tem no DF.
Quais são os profissionais habilitados para diagnosticar o autismo?
Desde que você seja formado em Psicologia, você deveria ser. É como o pediatra. Até bem pouco tempo atrás, boa parte dos pediatras não tinha condições de fazer esse diagnóstico. Depois que o autismo começou a ficar mais aparente, as pessoas falarem mais, hoje os pediatras têm mais capacidade para detectar os transtornos precoces. Mesmo assim, ainda tem muitos casos que passam despercebidos, assim como entre nós psicólogos também. Se o psicólogo não teve uma formação mais específica nessa área, muitas vezes ele não vai saber lidar, mas ele vai saber detectar porque nós temos uma formação mais próxima dos transtornos do desenvolvimento emocional de uma criança, a gente aprende muito isso na faculdade. Então se a gente tem uma criança que não está respondendo ao chamado da mãe, que não está olhando, que não está formando relações, então o psicólogo alerta: alguma coisa está acontecendo com essa criança.
O transtorno do espectro autista acompanha o indivíduo ao longo da vida? Como ocorre a intervenção do profissional de Psicologia considerando as diversas fases do desenvolvimento, desde a criança, passando ao adolescente e ao adulto autista?
Eu já acompanhei crianças que hoje nós não poderemos dizer que são autistas e outras sim. Na visão da Psicologia humanista e da Psicologia psicanalítica, não necessariamente o autismo vai acompanhar o indivíduo ao longo da vida. Se a gente falar isso para um psiquiatra clássico, ele vai dar pulos de ódio e vai dizer que isso não é possível, que uma vez detectado o autismo, o indivíduo será autista. Além disso, temos autistas que são funcionais, temos autistas que estudam, que fazem curso superior, que fazem Mestrado e que são autistas. Há outros que não foram nem alfabetizados e outros que são deficientes mentais e autistas. O autismo não é igual para todo mundo porque precisamos considerar também as patologias de comorbidades, as comorbidades associadas ao autismo, o que pode ocorrer também com pessoas que não são autistas e que também podem vir a desenvolver mais de uma doença simultaneamente. A abordagem do psicólogo com o adulto autista é mesma forma que com qualquer outro adulto. Vamos escutá-lo para entender como ele pensa os sentimentos dele, como ele percebe as pessoas com quem ele convive, os sentimentos hostis que ele carrega, a culpa que ele sente. É uma psicoterapia como a de outra pessoa que não seja autista. Uma boa parte das pessoas que tiveram o desenvolvimento aparentemente normal e que só na vida adulta começam a perceber que elas têm algo de muito específico, essas pessoas geralmente têm a Síndrome de Aspenger, que são pessoas que não entendem a intenção que o outro tem para com elas. Por exemplo: elas não sabem identificar se um aperto de mão quer dizer “seja bem-vindo” ou “eu não gostei de você”. O que comunicou aquele aperto de mão? Não se sabe. Eles ficam no vazio, não sabem decodificar. Uma figura de linguagem, por exemplo “a pessoa entrou pelo cano”. Ele vai ver uma pessoa entrando pelo cano e não consegue entender o significado daquela expressão. Não entende uma piada e não porque ele não tem inteligência, mas porque ele não decodifica o significado da piada, a metalinguagem. Se você faz uma pergunta do tipo: “você quer um copo de leite?”, ele não entende que você quer ser respondido. Alguns têm dificuldades em lidar com barulhos, se sentem ameaçados, não conseguem se sentir abraçados e então seus relacionamentos são um tanto desgastantes. Há uma série de características.
Você pode consultar a legislação e outras informações sobre o autismo em: https://www.autismo.org.br/site/images/Downloads/Legislacao2015_julho.pdf