Constituindo-se como uma das unidades básicas da sociedade, o termo família costuma estar associado ao agrupamento humano formado por indivíduos com ancestrais em comum e/ou ligados por laços afetivos. A instituição tem servido como base para a afirmação de direitos e formulação de políticas públicas no Brasil, a exemplo de programas como o Estratégia Saúde da Família, de âmbito nacional, e debates no campo legislativo para garantia de acesso aos serviços públicos.
Neste 15 de maio, Dia Internacional das Famílias, convidamos os profissionais de Psicologia do Distrito Federal e parceiros dos canais de comunicação do Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF) a refletir sobre o tema a partir das considerações apresentadas pela psicóloga Sandra Baccara em entrevista ao conselho profissional.
Sandra Baccara possui graduação em Psicologia pelo Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora (1978), mestrado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1982) e doutorado em Psicologia pela Universidade de Brasília (2006). É especialista em Psicologia Clínica, em Psicoterapia Infantil e do Adolescente e em Psicoterapia Conjugal e Familiar, atuando principalmente nos temas função paterna, família e alienação parental. Atualmente, é vice-presidente da Comissão Interdisciplinar do Instituto Brasileiro de Direito da Família no Distrito Federal (IBDFAM-DF).
Em que consiste a terapia familiar?
A terapia familiar é uma técnica que já não é nova, nasceu nos Estados Unidos, se difundiu muito por lá, e depois foi se espalhando pela Europa, América do Sul, e já há alguns anos temos usado também aqui no Brasil. Ela tem algumas áreas: temos a psicanálise, a terapia sistêmica, a comportamental. Embora eu seja psicanalista, eu utilizo a terapia sistêmica para trabalhar família. O que é a terapia sistêmica? É quando a gente entende que o sujeito está contido em um sistema e a família é um sistema, de forma que os conflitos que surgem dela, a própria família tem capacidade para resolver. Então, como terapeuta, eu sou um agente para favorecer essa compreensão. Tem várias linhas, várias vertentes dentro da teoria sistêmica, mas podemos resumir que é um espaço em que o casal ou a família vem buscar ajuda para resolver algo que está contido no sistema, no funcionamento dele.
Como ocorrem as intervenções do terapeuta no âmbito familiar?
Normalmente eu trabalho em dupla. Hoje, aqui na clínica, eu trabalho muito com um parceiro meu, um sócio, a gente atua como um par terapêutico. Aí depende muito da demanda. A gente procura atender toda a família: pai, filho, mãe, muitas vezes a gente vai buscar um familiar mais longe, mas que está envolvido ali. Para você ter uma idéia, eu já tive cachorro aqui dentro do consultório. Fazia tanto parte daquela família que ele também veio. E foi muito interessante a gente observar a reação dele diante do que a família dizia. Normalmente a família vem em nome de um paciente, que a gente chama de paciente identificado, e o que a gente busca entender é o que aquela pessoa, representando o sintoma da família, está dizendo naquele contexto familiar. Com isso, a gente tira aquele sujeito do lugar do famoso bode expiatório e diz “se existe esse sintoma, ele afeta todos vocês”. E a gente procura entender como afeta cada um deles. Existem milhões de técnicas que a gente utiliza, mas é um espaço em que você abre para todos, mas você não está preocupado em investigar um por um, como eu faço quando é a terapia individual. Claro que eu preciso conhecer as pessoas. Preciso entender a reação de cada um. Mas eu quero entender o que se passa naquele sistema para que o sistema reaja àquele comportamento ou o que aquele comportamento está encobrindo de um processo maior, de um sofrimento maior, por exemplo. Então a técnica é mais ou menos essa. Na terapia de família a gente busca trazer todo mundo, mas pode ser que em um determinado momento a gente veja só os pais, só os filhos. Porque a gente entende que a família, enquanto sistema, ela tem três subsistemas: o parental (pai e mãe), o conjugal (muitas vezes o pai e a mãe são também marido e mulher) e o filial (os filhos). Às vezes a gente vai olhar o subsistema sozinho. Eu atendo quinzenalmente, normalmente, e peço, por exemplo, para ver só os filhos. Na outra semana só os pais, só o casal. Vai depender muito da demanda. Não há uma regra rígida. Nosso objetivo é analisar o que aquele sintoma significa para que a gente possa atuar.
Normalmente quem procura a terapia familiar é o próprio paciente ou há alguma indicação profissional para que se busque esse tipo de terapia?
Normalmente há uma indicação, mas se eu estou com uma terapia individual e sinto que há uma demanda familiar, eu indico para um outro colega. Não parto de uma terapia individual para uma familiar. Quando se trabalha com criança é diferente, mas hoje eu só trabalho com adulto. Logo, é outro caminho. Então normalmente é um médico ou a escola, o próprio terapeuta de alguém que verifica algo que mereça uma abordagem familiar. Às vezes é a própria família que identifica “olha, a gente não está sabendo conversar”.
Quando falamos em família, ainda relacionamos, muitas vezes, à estrutura tradicional de pai e mãe com os filhos, mas os últimos censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que a configuração familiar tem mudado muito no país nas últimas décadas. Como a Psicologia e os terapeutas que trabalham com família têm lidado com esse contexto?
A gente trabalha muito mais com o conceito de função que o conceito biológico de família. Já tive aqui famílias compostas por mãe e filha, famílias homoafetivas, recasamentos. Para mim, são pessoas em sofrimento que, na dinâmica, não conseguem se organizar e vêm buscar ajuda. Se são duas mulheres, dois homens, uma família tradicional, família recasada, só a mãe com o filho ou o pai com o filho, não faz diferença na minha compreensão e na minha visão. Já tive situações de uma família homoafetiva formada por duas mulheres que estavam fazendo uma adoção e vieram se preparar para isso, depois vieram com os filhos frutos da adoção. Eu trabalho sobre a demanda. Quem me traz a demanda é o paciente. A demanda é que vai me dizer qual o caminho que vou tomar. O que eu sempre tenho muito claro é: eles têm competência para resolver o problema. O que falta é achar o caminho. E o meu trabalho é ajudá-los para achar o caminho para resolução do conflito. Não sou eu como terapeuta que resolvo o problema deles, mas como alguém que está de fora, que tem formação, técnica e tudo o mais, me sinto com competência para ajudá-los a descobrir a solução daquele problema que eles criaram.
Existem situações em que a busca pela terapia familiar é mais indicada?
Uma situação muito comum é a dificuldade de comunicação dentro da família. Os filhos adolescentes começam a ficar muito rebeldes e dão problema na escola ou os pais descobrem que os filhos estão fazendo uso de maconha, transando com o namorado, e a família não consegue resolver aquilo. Hoje, como os processos terapêuticos em geral estão muito abertos e muitos mais comuns, as pessoas estão com menos bloqueio e menos dificuldade de buscar a terapia, você busca a terapia individual, você começa a se trabalhar, mas de repente você descobre que você é o catalisador da demanda familiar. Então muitas vezes essa pessoa observa que não adianta ela se tratar sozinha. Ela precisa trabalhar com a família. Então ela busca uma terapia familiar. Esse é um caminho que às vezes a própria pessoa ou os pais observam “a gente não está dando conta de lidar com os nossos filhos, precisamos de ajuda”. Isso tem sido muito comum. Os pais chegam aos filhos adolescentes e pensam “meu deus, o que eu criei?”. A demanda chega aqui por todos esses caminhos.
O que deve fazer um profissional de Psicologia que queira se especializar na área de família?
Ele deve buscar uma formação, um curso de formação em terapia familiar. As faculdades, por melhor que sejam, têm muita limitação. Você tem um semestre de terapia de família. E um semestre na faculdade são três meses e meio ou quatro, o que não dá tempo de você aprender. Você vai ver ali a teoria e, se estiver fazendo estágio, vai passar por um semestre ou dois de estágio. É pouco tempo. Eu sempre disse que o primeiro caminho para se tornar um terapeuta é ser terapeutizado. A técnica a gente aprende é na prática. Então todo terapeuta de família tem que ter feito terapia com a sua família? Não, a terapia individual. O que passa aqui dentro não é tão diferente da minha história. Eu costumava brincar em sala de aula que não dá pra encher duas mãos de tipos de problemas e são problemas que nos afetam. Então se eu estou na minha terapia individual, a minha relação como filha, como mulher nas relações familiares estão resolvidas, vamos dizer assim. Freud dizia que a análise é interminável. Mas se isso está mais elaborado para mim, isso é um passo grande para eu poder trabalhar como terapeuta e como terapeuta de família eu acho que mais ainda. Porque vai mexer com a base da gente, com o meu conceito de família. Por exemplo, uma pessoa que é homofóbica, ela vai aceitar trabalhar com uma família homoafetiva? Vai ser muito difícil. Alguém que tem muita dificuldade de lidar com as questões do abuso sexual vai lidar com uma família que viveu isso? O primeiro passo é a gente se cuidar enquanto pessoa para ser um profissional. E depois é estudar. Então eu recomendo formação. Vai buscar uma formação porque lá você vai ver a teoria, vai trabalhar a prática, vai experimentar a prática, nem que seja ali na sala de aula. Em muitas formações você faz o estágio, você tem um supervisor. Isso vai te dar muito mais condição de acompanhar e entender a dinâmica familiar do que simplesmente “ah, vou trabalhar com família”. Sem formação, sem supervisão, sem a boa terapia é muito difícil ser um terapeuta.
O que a motivou a se especializar nessa área?
Eu me formei em 1978 em Juiz de Fora, em uma época em que a Psicologia estava engatinhando na minha cidade. Eu fui da terceira turma da faculdade em que me formei e havia poucos terapeutas na cidade. Eu fui trabalhar com criança, fui ser terapeuta infantil. E eu sentia na época que aquela criança, aquele sofrimento estava denunciando algo maior que eu não entendia muito bem o que era. Eu não tinha aprendido terapia de família na minha cidade. Em Juiz de Fora eu nunca tinha ouvido falar sobre isso, mas eu sentia que era preciso um trabalho maior porque eu estava meio que aceitando que aquela criança fosse um problema, quando eu via que o problema podia estar muito mais nos pais. E eu comecei a estudar, comecei a procurar entender. Aí eu fui para o Rio de Janeiro fazer Mestrado, conheci o Winnicott, que não é um terapeuta de família, é um psicanalista que é muito sistêmico (risos). Eu entendi isso depois. E o Winnicott falando sobre a relação de família, criança e tal, aquilo começou a mexer comigo. E em 1984 eu mudei para Goiânia, fui trabalhar em Goiânia e ali a terapia de família já era mais conhecida. Goiânia também não tinha formação, mas a gente fez contato com um pessoal de Brasília, que era a Julia Bucher basicamente, e o grupo que na época era o CEFAM (Centro Brasileiro de Estudos da Família), e a Julia começou a dar formação em Goiânia. E eu já entendia naquela época, claramente, a necessidade, mesmo que eu fosse ser só terapeuta infantil, e aí eu já estava trabalhando adolescente também, adulto. Eu sempre trabalhei, mas eu sempre tive uma visão muito para a infância, eu já via claramente que, mesmo que eu fosse continuar terapeuta infantil ou terapeuta individual, eu precisava conhecer essa dinâmica. Conheci o Winnicott e me apaixonei, comecei a estudar cada vez mais. É um autor com o qual o trabalho muito. E eu sentia a necessidade de entender, mesmo em um trabalho individual. A Julia começou a dar lá essa formação. Ela, o Ileno, o pessoal que na época eram os formadores de terapia familiar. Aí em 1991 eu mudei para cá e me engajei no CEFAM na época e aí sim eu vi que era um caminho para mim. Nunca abandonei a psicanálise, mas cada dia mais eu via que a terapia de família respondia a muita coisa que eu via na terapia individual, na análise e que eu via que precisava ir além, precisava entender a dinâmica maior do sujeito se eu entendo que nós somos fruto também dessa dinâmica. Temos lá as nossas características individuais, mas a gente também é fruto dessa dinâmica. Então isso começou a cada dia me estimular mais a estudar e me formei no CEFAM, comecei a trabalhar. Tem épocas que eu trabalho mais em uma coisa, mais com a outra. Depois eu fui para o Doutorado e conheci a Psicologia Jurídica, o que também partiu da terapia de família porque eu fui trabalhar a questão da função paterna, a importância da função paterna na estruturação do sujeito, na relação familiar. Então eu sempre estive cercada ou pela curiosidade, no início da minha vida profissional, ou pela compreensão de que a dinâmica familiar está presente todo o tempo com a gente. E foi assim que me apaixonei.
Olhando para o futuro em termos de limitações e possibilidades, o que uma profissional de referência na área diria para psicólogos que pretendem investir na terapia de família?
Eu acho que é um grande campo, é um campo que está aberto, que ainda tem muita coisa para construir. Por exemplo: não é específico, mas nos processos de mediação que estão tão em voga pela própria construção jurídica hoje, nós somos grandes mediadores na terapia de família. Eu sei que é diferente a técnica, que mediação não é terapia, mas com o conhecimento da terapia sistêmica isso me ajuda muito no processo de mediação, que é uma área que o psicólogo precisa abrir os olhos. Eu vejo como um caminho muito interessante. É um processo mais rápido, mais econômico. Você imagina uma família de seis pessoas: se os seis forem fazer terapia ou os seis fazem ao mesmo tempo. A sessão é mais cara porque ela é maior. E eu vejo a mediação como algo muito eficiente. Nunca abandonei a terapia individual e acho que nunca vou deixar de ser terapeuta individual. Não sou mais terapeuta infantil, de adolescente. Com os cabelos brancos, hoje eu sento e levanto do chão só com os meus netos. Mas sou formadora de terapia infantil e eu vejo que a terapia de família tem um espaço enorme. Hoje nós temos o espaço da terapia comunitária. Um terapeuta comunitário é um terapeuta de família. Com o conhecimento sistêmico, ele vai ter uma visão muito maior. Hoje uma área que está crescendo muito também é terapia familiar psicanalítica. Então eu vejo como um grande campo de ação para nós psicólogos e para quem está se formando. Hoje as universidades já falam muito mais, já trazem muito mais essa informação porque, não sei se felizmente ou infelizmente, a nossa sociedade anda com muita pressa e muitas vezes em um processo de terapia de família você faz a indicação para alguém buscar a individual. Às vezes não é nem o paciente identificado. Quando você tira ele daquele lugar, aparece o sintoma maior em outra pessoa ou em outro sistema. Então às vezes a gente fala “Olha, seria melhor você procurar uma terapia individual”. Eu vejo que a Psicologia precisa se abrir mais e sair de dentro do consultório. Eu sempre disse isso para os meus alunos: “Gente, a clínica é uma delícia, eu sou apaixonada, mas olhem outras coisas”. A gente precisa abrir o consultório, a gente precisa ser mais atuante na sociedade, a gente está precisando ser mais político. E a terapia de família eu vejo como um caminho muito importante. E acho que é um grande campo, está surgindo muita coisa nova na área que às vezes é até difícil de acompanhar. E técnicas muito interessantes que vão mostrando, cada vez mais, que a gente precisa conhecer essa dinâmica para poder situar o problema e tirar o problema daquele lugar cristalizado. Aquilo é um sintoma e o sintoma é a denúncia do sofrimento. Então aquela pessoa está denunciando que é um sofrimento e que aquele sofrimento, muitas vezes, está contido em todo o processo ou em toda a família.