O professor-doutor Mario César Ferreira comenta a nova lei 150/2015, conhecida como “Lei das Domésticas”
\r\n\r\nNo início do mês, a presidenta da República, Dilma Rousseff, sancionou a lei que regulamenta direitos e deveres de empregados domésticos. A lei complementar 150 de 1º de junho de 2015 dispõe sobre contrato de trabalho doméstico e altera várias leis acerca do assunto, de modo que impactará nas relações profissionais entre patrões e empregados domésticos e provocará algumas mudanças.
\r\nSobre isso, o psicólogo do trabalho Mario César Ferreira conversou com o Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal, proferindo comentários, explicações e opiniões acerca deste novo marco legal. Mario César é professor associado do Departamento de Psicologia Social e do Trabalho do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília (UnB), co-coordenador do Grupo Trabalho e Saúde da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia (ANPEPP) e coordenador do Grupo de Pesquisa no Diretório do CNPq Desenvolvimento de Pessoal e Qualidade de Vida no Trabalho no Setor Público (DViTra). Além de várias outras atividades na área de Psicologia do Trabalho, ele escreveu o livro "Qualidade de Vida no Trabalho. Uma Abordagem Centrada no Olhar dos Trabalhadores" e foi co-autor em mais três obras sobre assuntos relacionados a trabalho, cidadania, saúde, qualidade de vida.
\r\nConfira a seguir a entrevista com Mario César Ferreira:
\r\n\r\n1) Comente o que pode ser destacado de mais substancial, na sua opinião, entre as inovações da Lei Complementar 150/2015, em prol da relação saúde-trabalho e da promoção da cidadania.
\r\nA Lei complementar 150/2015, também conhecida como a “PEC das Domésticas”, representa uma etapa de conquistas formais com a marca de emancipação social de uma categoria profissional que, historicamente, sempre teve uma função essencial de garantia do conforto e bem-estar de famílias brasileiras com maior poder aquisitivo. Isto não é pouca coisa, pois é bem sabido que, no imaginário social brasileiro, a ocupação de doméstica sempre foi tida como trabalho de segunda categoria, desvalorizado. Casa limpa, organizada, roupa lavada e passada, refeições prontas... quem não precisa destes serviços vitais? Mas, entre o “precisar/querer” e o “reconhecer/valorizar” há, infelizmente, um descompasso abismal. No campo da relação trabalho-saúde, a lei se constitui em inequívoco avanço na medida em que prescreve regras que permitem a todos os profissionais que atuam na área, entre eles os psicólogos do trabalho, parâmetros gerais (ex. condições e relações de trabalho, segurança, nexo técnico epidemiológico etc.) para produzir diagnósticos e propor mudanças que garantam a dignidade destes trabalhadores. Na prática isto significa suporte jurídico para melhor investigar e intervir nos processos de trabalho e, deste modo, melhor compreender quando o trabalho “rouba” ou promove a qualidade de vida. De um ponto de vista mais geral, esta lei significa também um incremento para o processo de avanço e consolidação da cidadania. Num cenário social brasileiro contemporâneo ainda com tantas desigualdades sociais e falta de oportunidades, ela é, com certeza, um valioso aporte para a afirmação da cidadania no mundo do trabalho.
\r\n\r\n2) A nova legislação pode ser considerada um avanço nos direitos e deveres da(o) empregada(o) doméstica(o)? De que maneira?
\r\nO que esta nova lei faz é, globalmente, equiparar os direitos das domésticas com os direitos dos demais trabalhadores detentores de empregos formais ou os chamados “empregos com carteira”. E isto é, sem dúvidas, um considerável avanço no âmbito formal no caso da sociedade brasileira. O número de trabalhadores implicados no trabalho doméstico não é negligenciável: cerca de 9,1 milhões, segundo a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, entre os quais 80% são negros e 94%, mulheres. Estima-se que apenas um milhão tem carteira assinada. Tal cifra dá uma ideia bem concreta do esta lei permitirá avançar para tirar este segmento da classe trabalhadora brasileira de relações de trabalho do tipo pré-capitalista.
\r\n\r\n3) A lei em questão contempla os direitos humanos ou ainda deixa a desejar? Por quê?
\r\nA lei se inscreve, conforme preconiza a Organização Internacional do Trabalho (OIT), numa perspectiva de valorização do trabalho decente. Não é trabalho intelectual oneroso reencontrar no conteúdo desta lei aspectos fundamentais do nosso código de ética da psicologia tais como: respeito e promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano e, principalmente, a promoção da saúde e a qualidade de vida dos trabalhadores desta categoria profissional, buscando eliminar as formas de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão. Reencontramos aqui, portanto, elementos fundantes dos direitos humanos e nítida interface com o nosso código de ética.
\r\n\r\n4) Quais são os desafios dos psicólogos brasileiros na luta pelos direitos das(os) empregadas(os) domésticas(os)?
\r\nA nossa categoria profissional pode e deve contribuir para que os trabalhadores domésticos avancem nas suas conquistas. Não apenas como um imperativo de solidariedade de classe, mas, especialmente, porque a nossa grande e mais importante missão é “cuidar dos outros” em diferentes contextos e situações. Entre tantos desafios, cabe assinalar dois principais. Primeiro, é fundamental que possamos também contribuir para eliminar/reduzir a diferença entre o prescrito e o real, ou seja, este novo marco legal não pode “ficar no papel”. Tal risco já é bem conhecido de muitos trabalhadores brasileiros, pois entre o que diz a lei e o seu cumprimento há sempre uma distância. Segundo, ao serem chamados a intervirem no contexto do trabalho doméstico é fundamental, tal qual prescreve o nosso código de ética, que os psicólogos mantenham um posicionamento crítico das relações de poder que se configuram nestes contextos, pois elas têm impactos nas suas atividades profissionais que podem colocar em risco o sucesso de tais intervenções. A título de ilustração, há um aspecto na relação empregador doméstico e empregado doméstico que se coloca como uma pista interessante de investigação e de intervenção para os psicólogos do trabalho. Tal relação é marcada, na maior parte das vezes, por uma ambivalência de papel de natureza contraditória e geradora de tensão. Esta ambivalência pode ser formulada com base na seguinte questão: por que grande parte dos empregadores domésticos, oriundos principalmente da classe média brasileira e que, por sua vez, são também empregados assalariados com seus respectivos patrões – nesta condição eles vivenciam, muitas vezes, as contradições diversas com o seu respectivo empregador (ex. assédio moral no trabalho) – reproduzem com os seus empregados domésticos comportamentos patronais que condenam, denunciam, protestam.
\r\n\r\n5) O que se pode esperar de positivo das mudanças que a lei trás e o que ainda precisa ser conquistado?
\r\nO positivo a ser produzido dependerá muito do protagonismo que os trabalhadores domésticos e seus aliados podem assumir neste cenário inaugurado pelo novo marco legal. A tese de doutoramento (2006) de Lúcia Soratto no Instituto de Psicologia da UnB, intitulada “Quando o trabalho é na casa do outro: Um estudo sobre empregadas domésticas” – orientada por W. Codo e da qual tive o prazer de compor a banca – fornece pistas valiosas sobre o que ainda precisa ser conquistado, desta vez, tendo esta nova lei como aliada. Lúcia mostra com base em resultados de sua pesquisa o impacto da desvalorização social dos serviços domésticos que se manifesta nos salários e na precariedade dos direitos trabalhistas (neste último caso, já atenuada com a nova lei), a importância da autonomia para lidar com o custo físico do trabalho, o lugar ambivalente das relações afetivas para atenuar a repetitividade e garantir posição servil, o papel relevante do reconhecimento no trabalho doméstico. Enfim, os desafios para, efetivamente, se conquistar qualidade de vida no trabalho no contexto doméstico são muitas e convocam distintos protagonistas. O psicólogo do trabalho pode e deve ser um destes.