Por Paula Gabriela de Souza Pinto (CRP 01/20527)*
Publicado originalmente em 20/11/2019
Nós, pessoas negras, temos muitas formas de estar no mundo - todos nós temos. No entanto, vivemos contextos de preconceito, desigualdade e racismo que traduzem uma história de dor. Mesmo assim, há pessoas que não enxergam ou preferem não enxergar essa dor.
Hoje, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, é comum ouvirmos alguns questionamentos: “não precisamos de consciência negra, mas de consciência humana”, “somos todos iguais”, “só existe uma raça, a humana”. Embora muitos dados acerca da desigualdade racial no Brasil já tenham sido apresentados, não há dúvida, embora haja recusa por parte da sociedade, de que a população negra viva nas piores condições. Os indicadores são os mais desfavoráveis em saúde, educação, moradia, trabalho, representatividade.
Há características da nossa cultura que moldam o racismo no nosso país. “Se nós não temos um problema racial, para que discuti-lo?”. Nós continuamos vivendo a peculiaridade do racismo à brasileira, um racismo sem racistas. Responda para si mesmo de forma honesta duas perguntas: “O Brasil é um país racista?” e, por último, “Você é racista?”. A resposta invariável para a segunda é “não”.
Faz parte do desafio de enfrentar o racismo - e promover a igualdade - reconhecer sua existência. Na Psicologia, nós aprendemos desde muito cedo que a escuta é nossa principal ferramenta de trabalho. Aprendemos que, na prática psicológica, a escuta não é como uma escuta comum, mas como um ouvir diferenciado, pois quem escuta e quem fala se abre à experiência transformadora e ambos produzem novos significados que favorecem novos modos de sentir, pensar e agir.
Cabe a nós, psicólogas e psicólogos, enfrentarmos o mito da democracia racial e tantas outras crenças para que possamos promover uma Psicologia engajada na promoção da igualdade. Se nosso maior instrumento é a escuta, então precisamos ser sensíveis e qualificar a escuta que fazemos, pois o racismo produz sofrimento psíquico.
No contexto histórico, político e ideológico que estamos vivendo, em vigor dos direitos humanos, enquanto ciência e profissão, a Psicologia tem um papel decisivo para igualdade étnico-racial. Precisamos pensar qual o nosso lugar no enfrentamento ao racismo. Nós temos um lugar e nos cabe, enquanto profissionais de Psicologia, pensar como vamos adequar a nossa prática e conhecimento, para que práticas discriminatórias sejam revistas e superadas.
Por fim, termino essa breve reflexão com as palavras de Cuti, em seu testemunho em forma de poesia.
Quebranto
às vezes sou o policial que me suspeito
me peço documentos
e mesmo de posse deles
me prendo
e me dou porrada
às vezes sou o porteiro
não me deixando entrar em mim mesmo
a não ser
pela porta de serviço
às vezes sou o meu próprio delito
o corpo de jurados
a punição que vem com o veredicto
às vezes sou o amor que me viro o rosto
o quebranto
o encosto
a solidão primitiva
que me envolvo no vazio
às vezes as migalhas do que sonhei e não comi
outras o bem-te-vi com olhos vidrados
trinando tristezas
um dia fui abolição que me lancei de supetão no
espanto
depois um imperador deposto
a república de conchavos no coração
e em seguida uma constituição
que me promulgo a cada instante
também a violência dum impulso
que me ponho do avesso
com acessos de cal e gesso
chego a ser
às vezes faço questão de não me ver
e entupido com a visão deles
me sinto a miséria concebida como um eterno
começo
fecho-me o cerco
sendo o gesto que me nego
a pinga que me bebo e me embebedo
o dedo que me aponto
e denuncio
o ponto em que me entrego.
às vezes!...
*Paula Gabriela é psicóloga e mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).
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