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ARTIGO DA COMISSÃO ESPECIAL DE PSICOLOGIA E LAICIDADE DO CRP 01/DF

ARTIGO DA COMISSÃO ESPECIAL DE PSICOLOGIA E LAICIDADE DO CRP 01/DF


Objeção de consciência e reconhecimento das alteridades: uma reflexão ética sobre a escuta psicológica laica

Por: Tatiana Lionço

            A escuta qualificada pode ser entendida como a abertura às alteridades, no sentido de viabilizar tecnicamente e eticamente o acolhimento e o reconhecimento de subjetividades e modos de vida singulares e, portanto, distintos das condições psicossociais vivenciadas por profissionais de Psicologia. Em relação aos valores morais que orientam em grande parte a tomada de decisões por parte das pessoas no curso das suas vidas, é sempre oportuno lembrar que a Psicologia brasileira assumiu o compromisso histórico de valorizar a diversidade social e cultural, o que inclui o necessário reconhecimento da diversidade moral e da pluralidade religiosa como fatos sociais.

            Não precisamos concordar com as decisões morais das pessoas que estão sob os nossos cuidados, assim como não precisamos ter vivido experiências de vida semelhantes em relação às histórias que nos dedicam em confidência, para que possamos acolher e acompanhar os desafios de elaboração de sentido sobre tais acontecimentos. O reconhecimento das alteridades é, ao contrário, princípio ético e preceito técnico da profissão.

            Por outro lado, mesmo em exercício profissional, permanecemos sendo as pessoas que nós somos: dispomos de valores morais e culturais próprios, incluindo ou não a adesão a preceitos de fé estabelecidos em dogmas religiosos. Em relação à prestação de serviços à comunidade e às instituições, nosso Código de Ética Profissional dos Psicólogos (CFP, 2005) é enfático: devemos assumir responsabilidade apenas em relação a trabalhos para os quais dispusermos de competência técnica. Competência técnica para intervir não significa que tenhamos que ser semelhantes ou ter vivido situações análogas às experimentadas pelas pessoas que buscam o nosso cuidado. Assumir responsabilidade ética e técnica pode implicar inclusive a recusa na prestação de um serviço: se refere a dispormos ou não de referências teóricas que devem contribuir para a elaboração de sentido sobre diversas condições, que também informam direções para a intervenção, baseadas em evidências da efetividade do acolhimento e do acompanhamento psicológico das pessoas em adversidades variadas e muitas vezes graves e desalentadoras.

            O Artigo 5o da Constituição Federal de 1988 estabelece a isonomia nos direitos fundamentais à vida e à liberdade, afirmando explicitamente que é nosso direito não sermos obrigadas a fazer ou a deixar de fazer algo, senão em virtude da lei. Estabelece ainda a inviolabilidade da liberdade de crença e de pensamento. Gostaria de me deter no inciso VIII deste importante artigo constitucional, em que se afirma que "ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei” (Brasil, 1988, s.p.).

            Para profissionais de saúde, o que inclui parte significativa de profissionais de Psicologia, a objeção de consciência é afirmada como um direito no exercício da profissão, voltado a garantir a sua integridade moral. Isso não significa que quaisquer recusas baseadas em objeção de consciência sejam éticas e sustentáveis legalmente. Objetar contrariamente à demanda de outrem por cuidado não pode incorrer no impedimento do acesso ao cuidado, violando assim direitos básicos, como o direito à vida e à saúde. A preservação da integridade moral de profissionais não tem primazia sobre a integridade moral ou mesmo física das outras pessoas. Apenas podemos alegar objeção de consciência quando este direito não impuser dano ou violação.

            A objeção de consciência é "a recusa de profissionais de saúde ao dever de assistência por razões morais” (Diniz, 2013, p. 1704). Diante dos impasses legais e éticos que se colocam no contexto da assistência à saúde, a direção sinalizada por Debora Diniz é a da organização da tensão entre dogmas, sentimentos e necessidades de saúde. Da mesma forma, José Carlos Buzanello (2001, p. 175) sugere que a objeção de consciência "não pode ser invocada para conseguir exoneração de obrigação legal imposta a todos, permitindo apenas prestação alternativa”. Isso significa que profissionais podem alegar objeção de consciência diante de demandas em saúde desde que garantam que tal decisão não implique a violação do direito da pessoa que busca assistência. O caso do aborto é o que mais recorrentemente é tensionado por meio da objeção de consciência de profissionais, mas é importante lembrar que dogmas religiosos e convicções morais de profissionais não a/os eximem da responsabilidade sobre intervir para a garantia do direito à saúde das pessoas, devendo portanto garantir que sua objeção não implique na interdição do acesso de outrem a cuidados em saúde.

            Diante da complexidade da problemática, o Conselho Federal de Medicina estabeleceu uma norma ética e técnica para a objeção de consciência na relação médico-paciente e para a recusa terapêutica por pacientes (CFM, 2019). A Psicologia brasileira não dispõe de norma própria, e é importante que avancemos no debate amplo e democrático sobre a questão da objeção de consciência. A norma da Medicina brasileira tem sido amplamente discutida e não há consenso em muitos pontos. O que já dispomos na Psicologia é de posicionamentos da categoria de classe profissional sobre laicidade no exercício da profissão, algo que nos permite considerar a escuta psicológica em sua dimensão ética e técnica nos termos do desafio assumido por psicólogas em não restringir sua atuação profissional à reiteração das próprias convicções morais.

            É nesse sentido que nosso código de ética (CFP, 2005) estabelece que não podemos induzir as pessoas a aderirem às nossas próprias convicções morais, políticas e religiosas. Quando assumimos o compromisso ético e técnico implicado no exercício da assistência psicológica, também já assumimos acolher, reconhecer e acompanhar pessoas com as quais não concordamos em princípios morais. A objeção de consciência é um direito importante para a garantia da integridade moral: quem alega objetar conscientemente a realização de ato que ameace a sua própria integridade moral, deve justificar como a objeção se faz necessária para evitar danos psicológicos. É o caso de profissionais de Psicologia que reconhecem não dispor de condições psicológicas para atender pessoas que evocam, em suas experiências, conflitos e acontecimentos traumáticos que não puderam ser elaborados por tais profissionais em suas vidas particulares. Neste sentido, recusar atender é uma medida ética pois sinaliza a não garantia de que esta profissional dispõe de condições para assumir o trabalho, tecnicamente, pois sabemos que somos instrumento de cuidado por meio de nossa escuta. No entanto, a objeção de consciência não se justifica eticamente e nem legalmente quando acionada como suposta permissão para impor restrições morais ou às escolhas de vida das pessoas que buscam cuidados.

            A condição humana implica processo de transformação. Impasses, conflitos e dúvidas são parte integrante das possibilidades de ressignificação de si, das relações e da experiência compartilhada de mundo. A potência de nosso exercício profissional é justamente ampliarmos as possibilidades de escuta de pessoas nas mais diversas condições de sofrimento, qualificando, assim, nossa competência ética e técnica para o cuidado psicológico, psicossocial e psicoterapêutico. Psicólogas podem viver de acordo com dogmas de fé, mas a sua escuta só será efetiva se for laica, pois não pode ser terapêutico o não reconhecimento e a recriminação. Por fim, as pessoas são livres para adotarem seus preceitos morais na escolha de psicoterapeutas, mas não é ético que profissionais de Psicologia distinguam moralmente as pessoas entre as que merecem seus cuidados e as que não poderiam dispor da atenção em parte alguma. Cuidado psicoterapêutico é, fundamentalmente, acolhimento e acompanhamento, o que requer laicidade na escuta.

 

Tatiana Lionço é psicóloga, professora da Universidade de Brasilia - UnB e membra da Comissão de Psicologia e Laicidade do CRP 01/DF.

 

Referências Bibliográficas

Brasil. (1988). Constituição da república federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm Acesso em: 14/05/2020.

CFM (2019). Resolução CFM 2232 de 17/07/2019. Estabelece normas éticas para a recusa terapêutica por pacientes e objeção de consciência na relação médico-paciente. Disponível em: https://www.normasbrasil.com.br/norma/resolucao-2232-2019_382445.html. Acesso em: 14/05/2020.

CFP (2005). Resolução CFP 10/2005. Código de Ética Profissional do Psicólogo. Disponível em: http://satepsi.cfp.org.br/docs/codigo-de-etica-psicologia.pdf Acesso em: 14/05/2020.

Diniz, D. (2013). Estado laico, objeção de consciência e políticas de saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 29, n.9, p. 1704-1706. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/csp/v29n9/a02v29n9.pdf. Acesso em: 14/05/2020.

Buzanello, J. C. (2001). Objeção de consciência: uma questão constitucional. Revista de Informação Legislativa, v. 38 n. 152, p. 173-182. Disponível em: https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/730/r152-13.pdf. Acesso em: 14/05/2020.

 



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