O dia 28 de junho é marcado pelo Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, celebrado mundialmente desde 1970, um ano após um episódio marcado por agressões e violências decorrentes de uma batida policial em um bar em Nova Iorque, onde a maioria de frequentadores eram pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros, queer, intersexo, assexuais e outras (LGBTQIA+). De lá para cá, o movimento se expandiu e já alcançou avanços em muitos países. Atualmente, no Brasil, casais homoafetivos podem adotar crianças e casar-se no civil, a homo-trans-fobia é considerada crime e as identidades trans não são mais vistas oficialmente como patologias. Mas tais conquistas não superaram ainda todas as violações de direitos e violências de diversas ordens a que essas pessoas são submetidas todos os dias. Assim, faz-se necessária a data como lembrete de resistência.
Na semana do Orgulho LGBTQIA+, o Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal conversou com o psicólogo clínico Ernesto Nunes Brandão, um homem transgênero, mestre em processos do desenvolvimento humano e saúde pela Universidade de Brasília (UnB). Ernesto colabora atualmente como membro da Comissão Especial LGBTQIA+ do CRP 01/DF. Confira a entrevista:
1) Por que um dia para celebrar o orgulho LGBTQI+? Qual a importância dessa data para a luta pelos direitos humanos das pessoas LGBTQI+?
As datas celebrativas de resistência são geralmente marcadas por muitas lutas e processos históricos. De uma forma ampla, penso que elas são importantes na promoção do debate sobre o tema. Para a comunidade LGBTQIA+, que sofre grande preconceito, datas como essa são fundamentais para disseminação de informação, visibilidade sobre o tema, promoção de debates. A luta pela nossa existência é cotidiana, não nos esquecemos que somos corpos dissidentes, convivemos diariamente com violências, negligências e abandono, então, para mim, enquanto pessoa que se encaixa em mais de uma letra da sigla, ter um espaço marcado, uma data preestabelecida, ajuda a retomar a noção de que somos uma comunidade grande e diversa. Datas como essa são um carinho no coração, um lembrete escrito: “não esquece, somos muites, muitas e muitos, e a nossa existência é legítima e linda!”
2) Na sua opinião, como o Brasil pode combater a LGBTQIA+fobia, levando em consideração que é algo estrutural, instalado na cultura do nosso país e perpetuado por falta de ações efetivas do poder público no combate às violências e violações de direitos dessas pessoas?
Esse é um ponto muito importante. As conquistas por direitos e espaço são muito frágeis, haja vista que uma mudança de governo para um perfil mais conservador faz retroceder com facilidade muitas conquistas. A homo-trans-fobia faz parte de um dos pilares como todas as demais questões estruturais que alicerçam o nosso Estado Nação, com o racismo, o machismo, o classismo e o especismo. Essa pergunta está longe de ter alguma resposta simples ou fácil. Temos um caminho longo e árduo na construção de uma sociedade que seja de fato igualitária. Penso que a educação é um ponto central nisso, não à toa, grupos conservadores estão tão empenhados em emplacar a crença na ideologia de gênero.
3) Você é um homem trans, psicólogo. Como foi sua experiência até aqui? Quais desafios já enfrentou e ainda enfrenta nesse lugar?
Eu transicionei depois da minha formação e pós-graduação em psicologia, isso possibilitou que eu estivesse em espaços pouco ocupados por pessoas trans. Entretanto esse processo foi feito com muitas custas. Apesar de o espaço escolar ter sido, via de regra, difícil e violento, ter permanecido “dentro do armário” tanto tempo possibilitou que eu concluísse etapas profissionais importantes. Contudo nossa identidade não pode ser contida e a maioria das pessoas trans se reconhecem como tal logo no início da vida adulta ou adolescência, nesse caso o espaço escolar, as instituições fundamentais na formação e promoção de acesso a empregos são negadas a essa parte considerável da população que, somando as violências que sofrem no lar, incluindo expulsão de casa, ficam relegadas à marginalidade e a prostituição, cada vez mais vulneráveis às violências estruturais. Como profissional de saúde mental e pessoa trans, o que tem me chamado atenção no meio psi é o total despreparo da categoria no acolhimento ao público LGBTQIA+, em especial travestis e transexuais. Muitos desconhecem absolutamente a nossa realidade e atuam de forma equivocada, sem se proporem a repensar o lugar da Psicologia no processo de produção de vida que estejam distantes dos desenhos tradicionais de normalidade ensinados equivocadamente pela ciência psi.
4) Até pouco tempo, a transgeneridade e a transexualidade eram consideradas doenças. O que a despatologização trouxe, na prática para as pessoas trans? E para a sociedade num geral?
Até o momento atual muito pouco. Ainda que essa mudança tenha acontecido nas normativas médicas e legais, a maneira de pensar as existências trans ainda é muito balizada pela patologização. Penso que é um primeiro passo, mas mudar a lógica de olhar tá muito relacionado à forma como encaramos a própria psicologia de forma mais ampla. Não só as existências LGBTQIA+ são patologizadas. O modelo colonial de pensar a vida e os corpos nos forjou enquanto ciência pela via patologizante de outras existências que não as hegemônicas e precisamos olhar para isso.
5) Como a Psicologia pode, na sua visão, participar ainda mais das demandas da comunidade LGBTQIA+? Qual é o papel dela e quais os desafios de profissionais de Psicologia na luta pelo reconhecimento dos direitos das pessoas LGBTQIA+?
Penso que é importante abrir espaço no currículo da Psicologia para incluir formação sobre diversidade, sexualidade, questões sociais de forma crítica, mas tenho a sensação de que a Psicologia ainda está muito focada na lógica médica, individual e orgânica.
Além da transformação no currículo, a Psicologia precisa repensar o lugar de detentora do saber e do que ela padronizou como normal, e a ansiedade pela classificação das existências, tentar parar de dar respostas e passar a ouvir os sujeitos, e não dizer por eles.
Sair do lugar de poder e silenciar são dois exercícios importantes para a Psicologia começar a, de fato, se comprometer com a comunidade LGBTQIA+.