Matheus Asmassallan, Psicólogo (UESPI), Especialista em Direitos Humanos (FAR), Mestre em Psicologia Escolar e Desenvolvimento (UnB) e Doutorando em Psicologia (UFBA). Psicólogo Escolar do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Integrante do Observatório da Vida Estudantil - OVE/UFBA e do Observatório de Racialidade e Interseccionalidade - ORI/UFBA.
1. O que é medicalização? Por que é importante um dia de luta contra medicalização?
Eu parto do princípio de entendimento de que somos seres sociais e relacionais. Então, para falar de medicalização, precisamos falar do processo de patologização das nossas vidas. Entendo patologização como processo de dizer, nomear, rotular, diagnosticar, psicodiagnosticar, psicopatologizar uma vivência diferenciada ou uma vivência até cotidiana, mas dita, vista, excluída como anormal, como adoecida ou como doente. A medicalização vem como instrumento, principalmente de ciências médicas (como a medicina) para corrigir, adequar, enclausurar, encarcerar ou colocar em caixinhas essas vivências e seus sujeitos. Ou, falando aqui como psicólogo escolar, colocar em salas especiais esses sujeitos. Compreendo assim a medicalização como uma forma de aprisionar vivências que fogem daquilo que a Psicologia, as ciências médicas ou a sociedade capitalista, racista, patriarcal, classista e xenofóbica em que vivemos diz sobre o que deve ser normal. E aí eu pergunto, o que é ser normal para a medicalização? Seria um sujeito hétero, branco, rico, herdeiro, que não precisa se qualificar para ocupar os espaços de poder e governamentalizar as vivências dos sujeitos da classe trabalhadora, dos territórios quilombolas, indígenas que, inclusive, já estavam aqui antes dos processos de colonização? Então, vejo que o processo de medicalização vem como um ideal imaginário, que não é possível para toda a sociedade brasileira ou mundial, definindo ou aprisionando essas vivências, que não cabem em psicodiagnósticos, em laudos e no olhar conservador neoliberal dessa sociedade capitalista em que se vive no Brasil e no mundo.
Entendo que não é necessário só um dia de luta, mas uma luta cotidiana contra a medicalização. Um dia de luta, no entanto, se torna importante para nos lembrarmos de que ainda não estamos numa sociedade de uma Psicologia que luta e labuta pela emancipação de todos os sujeitos, inclusive dos sujeitos que são mais aprisionados, mais encaliçados, mais encarcerados pelos processos de medicalização no Brasil; sujeitos esses que ainda lutam por água potável, que não têm acesso ao saneamento básico, que estão precisando do auxílio emergencial deste desgoverno capacitista e meritocrático. Ou seja, é preciso se lembrar de que a Psicologia deve ter um compromisso ético e político com os mais vulneráveis, que vivenciam e sofrem com os processos de medicalização no Brasil.
2. Por que é importante um olhar racializado sobre os processos de medicalização da educação e da sociedade?
O meu local de fala é esse local de formação em Psicologia voltada para a Psicologia Escolar. Eu acredito ser essencial que a luta comprometida ética e politicamente contra a medicalização na educação seja a partir de uma racialização, uma vez que a Psicologia que chega no Brasil é desenvolvida, pensada, gerenciada, teorizada por pessoas brancas de classe média alta. Ainda hoje são essas pessoas que ampliam e que são as mãos dos serviços de Psicologia, em sua maioria.
A gente precisa racializar a população de etnia branca no Brasil, porque é um grupo de privilégio, com vivências diferenciadas, que tem sua humanização garantida. Não posso, ao falar de raça, lembrar apenas dos indígenas, das populações negra e cigana, isto é, da população que deve ser protagonista nos movimentos de enfrentamento antirracista. É preciso também falar das pessoas que produzem e reproduzem essas exclusões. É essencial racializar os processos de medicalização e os processos de luta e enfrentamento, identificando quem são os sujeitos que estão gozando dessas discrepâncias raciais no Brasil e dizer quais são seus papéis.
É irritante quando estou numa mesa com colegas brancos que falam “isso vou deixar para o Matheus falar, pois é local de fala dele”. No Brasil, durante esse período pandêmico da COVID-19, é a população negra que tem mais morrido. Ao longo do tempo, em relação ao genocídio, à violência policial ou do Estado racista, é a população negra que é mais assassinada. Em relação ao feminicídio, mesmo com a Lei Maria da Penha, são as mulheres negras que mais morrem. São as crianças negras que ocupam as maiores taxas de analfabetismo no Brasil. Somos nós que ocupamos os empregos com os piores salários, e somos minoria na parcela mais rica do Brasil. Onde está então nossa qualidade de vida para poder falar? Tem que falar quem está vivo e que tem a humanidade garantida, que é a população branca. Assim, é fundamental racializar o olhar da Psicologia que está enfrentando os processos de medicalização da educação e da sociedade, no Brasil e no mundo.
3. Como a Psicologia pode contribuir na luta por uma educação não medicalizante e antirracista?
Pode contribuir começando a se refletir. Foi aliada à medicina ou aos processos medicalizantes das ciências médicas, como a medicina, que a Psicologia chega no Brasil para adequar pessoas que eram vistas como incapazes, inaptas, não normais ou adoecidas, inclusive com investimento em testes ou processos psicométricos. Não acredito que seja um problema os instrumentos em si, mas a concepção que se tem no uso deles, a irresponsabilidade que se tem ao usá-los na avaliação psicológica. Testes e técnicas que são, inclusive, de uso único da Psicologia. Então me pergunto: de que adianta lutar pelo uso privativo e fazê-lo de modo irresponsável, em benefício apenas de uma parcela da população ou continuar usando para a exclusão e não para a emancipação? A Psicologia pode contribuir principalmente refletindo sobre o que ela já fez para estarmos onde estamos. Fazendo a crítica da nossa sociedade classista, racista, machista, patriarcal, capacitista e observando como as psicólogas e os psicólogos contribuem para pensar em estratégias e processos de contrafazer isso. O primeiro passo é, portanto, a reflexão, colocarmo-nos como protagonistas desses enfrentamentos. Nós somos privilegiados enquanto psicólogos, por trabalharmos com a educação no Brasil e podermos somar à luta institucional e coletiva, comprometida ética e politicamente com a sociedade que mais sofre processos de medicalização com discrepâncias raciais.
Se é para apostar numa via de enfrentamento ou de contribuição da Psicologia eu diria: vamos nos racializar e vamos protagonizar processos de enfrentamento à medicalização. Colocar-se como protagonista de alianças, de construção de pontes, de uma escuta qualificada desses sujeitos que sofrem, que vivenciam e que são mortos nesses processos de medicalização.
Se eu penso nas prisões, nas pessoas que passam fome, nas pessoas que estão precisando do auxílio emergencial, nas pessoas que estão sem energia lá no Amapá, nas pessoas que estão nas periferias levando baculejo todos os dias e sendo assassinadas pela polícia, eu estou pensando em processos de medicalização e de patologização. Disseram que esses corpos merecem, devem e precisam ser matados, não precisam estar vivos. Vale então aqui retomar minha concepção de medicalização, que é um tipo de morte em vida. Ela vai matando o sujeito com a desculpa de que ele é anormal, é adoecido, e não merece estar vivo, e que somente através de processos medicalizantes é que ele vai poder viver. Assim se adoece ainda mais o sujeito porque ele é “doente”.