| NOTA DE POSICIONAMENTO DO CRP 01/DF |
Em defesa da Inclusão Escolar frente às recentes declarações do Ministro da Educação, Milton Ribeiro
Recentemente, dia 19 de agosto de 2021, o ministro da educação do Governo Bolsonaro, Milton Ribeiro, proferiu fala infeliz e bastante criticada, quando afirmou que "há crianças com grau de deficiência em que é impossível a convivência". Essa declaração sucede outra, que causou estarrecimento nas entidades de defesa dos direitos da pessoa com deficiência, na qual afirmou que estudantes com deficiência “atrapalham” o aprendizado de outras crianças. Na última terça-feira, dia 24 de agosto, a despeito de todas as reações e críticas que definiram seu discurso como “desrespeitoso” e “discriminatório”, o ministro reforçou o tom capacitista que tem usado ao afirmar que ele e seus apoiadores políticos não queriam o “inclusivismo” - terminologia, aliás, estranha ao jargão da educação especial e que busca reduzir a aposta da sociedade brasileira no projeto de inclusão escolar a uma espécie de ideologia que traz prejuízos para as crianças com e sem deficiência.
A julgarmos pela frequência com a qual os representantes do Governo Federal fazem declarações nefastas como essas, devemos ter explícito que não se trata de uma simples inabilidade de oratória, uma fala descontextualizada ou mal interpretada. Trata-se, na verdade, de uma ação estratégica; um padrão comunicativo deliberadamente marcado pelo cinismo, um ato de fala útil em preparar o terreno para a imposição do programa de desmonte que vem pautando as ações desse governo. O termo “cinismo” aqui é usado para definir uma estratégia comunicativa pela qual o falante explicita uma perspectiva que sabe ser moralmente aviltante e controversa, e o faz com desprezo pelos potenciais efeitos de sua fala. Uma atitude que impõe a uma perspectiva que, de outra forma, seria inaceitável, neutralizando argumentos contrários e minando o próprio exercício do debate democrático.
No concernente ao campo da educação inclusiva, é importante notar que tais declarações fazem referência e ocorram às vésperas da votação do Decreto Presidencial 10.502, de 30 de setembro de 2020, que busca instituir a chamada “Nova Política de Educação Especial”. Assim, as declarações do ministro se configuram como expressão de um posicionamento de defesa intransigente e alinhamento aos princípios expressos por um Decreto que tem sido objeto de calorosos embates no campo da educação e, que, segundo especialistas, vai na contramão das prerrogativas éticas, científicas, políticas e metodológicas que sustentam o processo de “inclusão escolar”.
No campo da educação, o termo “inclusão escolar” faz referência a um projeto social que busca uma ampla reformulação das políticas de educação especial no Brasil e a superação do modelo segregacionista e capacitista pelo qual ela vem historicamente se constituindo. Trata-se de uma construção coletiva que vem sendo discutida, aperfeiçoada e implementada no campo da educação no Brasil desde a década de 80, graças ao trabalho e esforço de inúmeros estudantes, familiares, profissionais e estudiosos do campo. Embora tenha se concretizado de forma heterogênea em todo o território nacional, as conquistas do processo de inclusão escolar são inegáveis e são fruto das reivindicações e movimentos sociais de pais, educadores e de pessoas com deficiência pelo acesso ao direito à educação em condições de igualdade.
Trata-se de um processo viabilizado pelo debate social e pelas proposições de avanços metodológicos, conceituais, tanto no campo da educação, como no campo do direito, sendo materializado por declarações e normativas que reconhecem a necessidade de superação do histórico segregacionista e capacitista da nossa sociedade, bem como, a importância da luta pelo direito à educação das pessoas com deficiência e sua inserção de modo equânime no sistema educacional.
A inclusão escolar consiste, antes de tudo, em uma postura de compromisso ético-político assumido por toda a sociedade com a universalização do direito à educação por meio do respeito às diferenças e pela promoção de equidade nas condições de ensino. Reflete e se alinha ao anseio de vários países por uma sociedade que acolha a diversidade humana e garanta o direito à educação igualitária e de qualidade a todas/os, independentemente de suas condições físicas ou mentais.
Infelizmente, quatro décadas depois das primeiras iniciativas em território nacional, o projeto social de inclusão escolar é um desafio ainda inconcluso. A implementação de políticas e metodologias inclusivas ainda não foram plenamente incorporadas pelos sistemas públicos e privados de ensino. Muitas pessoas com deficiência ainda estão apartadas de condições de ensino capazes de considerar sua singularidade, permanecendo, assim, destituídas do direito à educação em condições de equidade com as demais pessoas.
Contudo, a partir do processo de inclusão no Brasil, observou-se um aumento significativo da presença de pessoas com deficiência em escolas regulares e o desenvolvimento de métodos e práticas voltadas à sua inclusão em ambientes de ensino regular. Estima-se que hoje, após as primeiras propostas de educação inclusiva, cerca de 90% das pessoas com deficiências que têm acesso ao sistema educativo estejam inseridas em instituições regulares de ensino, que desenvolveram métodos e estratégias variadas de ensino para garantir o acesso e a permanência, tornando-se, em maior ou menor grau, instituições inclusivas.
Tanto em sua dimensão política como em sua dimensão científica e metodológica, profissionais psicólogas(os), protagonizam, ao lado das(dos) professoras(es), ações que subsidiam o processo de inclusão nos territórios. Em especial, o trabalho das/os psicólogas/os escolares é fundamental no sentido de possibilitar a efetivação das políticas de inclusão escolar. Ele responde aos anseios e demandas por uma educação capaz de contemplar a diversidade de formas de aprender e ensinar, garantindo o direito da pessoa com deficiência ao espaço da escola.
Considerando o potencial deletério das declarações do Ministro da Educação, o Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal - CRP 01/DF, vem, por meio desta nota, posicionar-se e informar à população e aos inscritos sobre a importância do processo de inclusão escolar. O CRP 01/DF alerta para gravidade de declarações que atacam o direito das pessoas com deficiência ao acesso aos espaços regulares de ensino. Esse Conselho lembra do compromisso que as/os profissionais psicólogas/os assumem de respeitarem os valores que embasam a Declaração Universal dos Direitos Humanos e basear seu exercício profissional no respeito e na promoção da liberdade, da dignidade, da igualdade e da integridade do ser humano, contribuindo para a eliminação de quaisquer formas de negligência e discriminação. Assim, condenamos o caráter capcioso das declarações do Ministro da Educação e parte em defesa do processo de inclusão que, em seu entendimento, materializa, pelo trabalho e dedicação de inúmeros profissionais, o reconhecimento das pessoas com deficiência enquanto sujeitos de direitos.
Conhecer e respeitar o processo de inclusão escolar, os serviços e os profissionais envolvidos nessa árdua tarefa, são deveres de toda psicóloga e de toda psicóloga consciente das consequências da segregação e capacitismo. Assim, solidarizamo-nos com profissionais que atuam diariamente em condições quase sempre precárias, pondo em prática nas lutas do cotidiano os princípios da inclusão. Prestamos nossa solidariedade às/aos profissionais que atuam nas salas de recursos, nas classes comuns inclusivas, nas classes especiais, e nos solidarizamos às/aos monitoras, educadoras sociais voluntárias e às profissionais, pedagogas e psicólogas, das equipes especializadas de apoio à aprendizagem que criam diariamente soluções e estratégias que possibilitam a inclusão, contribuindo para a reformulação da concepção do que é e para o que serve a educação na construção de uma sociedade mais igualitária.
A exclusão é prejudicial a todas as pessoas, sejam elas com ou sem deficiência, o respeito e a convivência com a diversidade humana são uma fonte de possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem coletiva. Há de se lutar, assim, para a ampliação do processo de inclusão escolar e social, denunciando a precarização programática e estrutural da educação pública como um todo, e da educação especial em particular.
Para escolas cada vez mais inclusivas, devemos ampliar o investimento em educação e assim promover o direito inalienável de todos os indivíduos de se desenvolverem em interação com seus pares, de desenvolverem suas capacidades e se reconhecerem e serem reconhecidos enquanto sujeitos de direito. A garantia de formação de profissionais e dos apoios necessários ao processo de inclusão é investimento para a consecução de uma política educacional que garanta o acesso universal e de qualidade.
Reiteramos, assim, que não há outro caminho que não o da inclusão. Que pessoas com deficiências não retornarão aos espaços segregados e historicamente precarizados. Que elas não serão invisibilizadas e suas existências não serão limitadas ao espaço privado de suas casas e quartos, como foram no passado pela mentalidade e por práticas que provocam a naturalização da violenta interdição de seu acesso aos espaços de convivência coletiva e à escola.
Se, pelo termo “inclusivismo”, Milton Ribeiro busca fazer referência ao sofrimento causado pela inclusão feita em condições que não favorecem a real convivência da pessoa com deficiência nos espaços regulares de ensino, é preciso lembrar que esse sofrimento é muito mais o efeito de um histórico de precarização programática desses espaços do que, propriamente, de uma impossibilidade taxativa de convivência que alguns indivíduos supostamente apresentam, ou do fracasso do projeto de inclusão. A inclusão responsável de fato exige mais recursos públicos, com menor quantitativo de crianças por sala de aula e por professor, investimentos em recursos físicos, humanos e formação adequada. Ela cobra, portanto, uma ruptura com a mentalidade que naturaliza a precarização histórica da educação pública de um modo geral e da educação especial em particular. Requer, portanto, que uma sociedade que foi induzida a pensar os sujeitos com deficiência enquanto passíveis de serem apartados do regime de direitos, passe a reconhecê-los enquanto cidadãos, portadores de plenos direitos.
Trata-se de uma mudança de mentalidade que começa a dar seus primeiros passos, uma escolha da sociedade que destoa da lógica do estado mínimo e do ataque às conquistas sociais históricas da população brasileira. Em vista desses avanços, hoje, nos territórios onde o projeto da inclusão tem avançado, os educadores têm testemunhado o surgimento de uma geração de crianças e adolescentes que aprenderam a lidar com as diferenças típicas do humano de uma maneira mais natural e solidária, uma geração mais colaborativa, empática, ciente da diversidade e pronta para defender os direitos dos mais vulneráveis. Esse processo tem mostrado que a educação inclusiva é positiva para todos, e não só para as pessoas com necessidades educacionais especiais.
O CRP 01/DF endossa as críticas feitas às falas inaceitáveis do Ministro da Educação e reafirma seu papel na luta por políticas públicas que possibilitem o desenvolvimento de todes, trabalhando na direção da superação dos processos de exclusão e estigmatização social. Não aceitaremos retrocessos!
Essa nota foi escrita pela Comissão de Educação do CRP 01/DF, em parceria com educadora/es, pedagogas/os e professoras/res trabalham ativamente pela inclusão de crianças com necessidades especiais em escolas públicas do Distrito Federal.