Entrevista com Yaba Blay*
Na data de 25 de julho é celebrado, desde 1992, o Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha. Naquele ano, foi realizado em Santo Domingo, na República Dominicana, o 1º Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Caribenhas, ocasião em que foi criado o marco internacional de luta e resistência dessas mulheres, com a finalidade de ampliar e fortalecer as organizações de mulheres negras, construir estratégias para a inserção de temáticas voltadas para o enfrentamento ao racismo, sexismo e outras formas de discriminação.
Em Brasília, um festival com a mesma temática chega a 2015 em sua oitava edição. A conselheira regional, Márcia Maria da Silva, esteve presente nos primeiros dias do evento e ressaltou a importância de encontros como esse para o fortalecimento da afetividade entre a população negra. Afirmouser "uma excelente oportunidade das pessoas negras se verem representadas, já que este ano o festival trouxe como tema o cinema negro". Expôs ainda, que o enfrentamento ao racismo exigirá o exercício de compreender como ele atua e de que forma impacta as subjetividades da população negra. Por fim, ratificou que o papel da Psicologia é estudar, analisar, refletir sobre as relações raciais, procurando encontrar caminhos no sentido de contribuir enquanto ciência na melhoria desses vínculos.
Uma das atrações do Festival Latinidades, que acontece até domingo no Cine Brasília, foi a conferência da Doutora e professora da Universidade de Drexel, nos Estados Unidos, Yaba Blay. Com primeira graduação em Psicologia, Yaba Blay é etnógrafa e escritora, com produção intelectual sobre estéticas e práticas culturais, cultura popular negra, identidade e políticas raciais. É também autora do livro (1)ne Drop: Shifting the Lens on Race, ainda não disponível no Brasil. Confira agora a entrevista realizada com a professora durante o festival:
1- É a primeira vez que vem ao Brasil? Qual tem sido a impressão sobre o País, sobretudo referente às relações étnico-raciais?
Sim, é a primeira vez. Não vi muita coisa ainda, vim direto do aeroporto para o festival. O que eu sei do Brasil é mais o que as pessoas falam do que algo que eu tenha visto, mas eu acho que seja bem parecido com os Estados Unidos. Por exemplo, eu cheguei no aeroporto e percebi que as pessoas negras como eu estavam trabalhando, limpando, e as pessoas brancas estavam fazendo outras coisas. Então isso já mostra que é bem parecido com os Estados Unidos.
2- É muito comum ouvirmos no Brasil que o racismo praticado aqui é diferente dos Estados Unidos, por se tratar de uma realidade que é velada, escondida. Qual a sua percepção sobre isso?
Nos Estados Unidos é muito similar. Lá também ninguém diz que é racista, mas a sociedade é e sempre foi. Atualmente, por causa dos direitos civis, espera-se que você não seja racista e você também não pode dizer que você é racista, mas o histórico dos comportamentos diz que sim, que o racismo é muito presente. Não li muito sobre o racismo no Brasil e muito do que sei é o que brasileiros negros me contam. Muitas pessoas dizem que no Brasil não tem racismo, mas quando alguém diz isso é importante estar atento a quem é a pessoa que está falando, se é alguém que se parece comigo ou não.
3- Como tem sido a experiência de participar do Festival Latinidades e como avalia esse tipo de evento?
É maravilhoso e necessário e é muito legal que as pessoas sejam capazes de fazer isso. Temos algumas experiências parecidas de festival nos Estados Unidos. Nós, mulheres negras conversando, sabemos que o racismo existe, mas ter um espaço como esse em que se possa falar publicamente sobre o assunto é muito importante, é relevante que as mulheres tenham espaços sagrados como esse. O assunto que tratei aqui na conferência é algo sobre o qual falo bastante nos Estados Unidos, mas falar aqui foi um pouco diferente pelo modo como as pessoas estavam me ouvindo. As pessoas respondiam de uma maneira que parecia que elas estavam precisando ouvir coisas assim.
4- Você tem um histórico de pesquisa sobre os padrões de beleza no contexto da supremacia branca. Um dos assuntos da sua conferência ontem foi justamente a forma com que, algumas vezes, pessoas não incluídas nesse grupo dominante tenham que imitar a branquitude para serem consideradas socialmente bonitas. Como você analisa essa relação sobretudo a partir dos impactos subjetivos desse contexto?
Quando algumas pessoas tomam alguma atitude no sentido de embranquecer a pele, por exemplo, costumam dizer que elas são simplesmente loucas. Eu acho que não. Não acredito que elas sejam loucas. Elas estão respondendo ao que a sociedade está dizendo a elas sobre o que é a branquitude. Todos nós recebemos a todo momento mensagens do que é a supremacia branca, mas nem todos respondem a isso da mesma maneira. Em Gana, por exemplo, de onde vem a minha família, alguns homens costumam querer casar com mulheres de pele mais clara. Se a mulher negra olha para um outdoor, ele diz que ela precisa ter a pele mais clara. Na televisão, a pessoa bonita é a que tem a pele mais clara. E lá existe um produto para clarear a pele. Então a todo momento você diz para a mulher negra que ela precisa ter a pele mais branca e é isso que ela faz. A atitude dela faz sentido porque na sociedade os sinais todos dizem que ela precisa se embranquecer. A gente passa muito tempo discutindo sobre a mulher que clareia a pele e nenhum tempo discutindo sobre os elementos da branquitude que dão a ela os sinais para que queira ter a pele mais clara.
5- Ainda não tivemos a oportunidade de ler o seu (1)ne Drop: Shifting the Lens on Race no Brasil. Poderia falar um pouco sobre a proposta e a discussão central do livro?
Nos Estados Unidos existe o que chamamos da "regra de uma gota" e essa regra foi elaborada obviamente por pessoas brancas para definir quem é branco e quem não é. Não há como mensurar essa gota de sangue, mas por essa regra, se você tem algum familiar negro, você teoricamente seria negro. Nos Estados Unidos, existiam pessoas brancas que eram livres e pessoas negras que eram escravas. Os brancos costumavam estuprar as mulheres negras e isso fez com que surgisse a miscigenação. Então para garantir que os mestiços também fossem escravos, criou-se essa regra de uma gota. Se você tem uma gota de sangue negro, você é escravo. Foi uma forma da população manter o poder sobre as demais. A ideia com esse livro era conversar com pessoas que não são visualmente negras, mas que se identificam como negras. E o objetivo era entender por que essas pessoas se identificam como negras. Por conta da regra da gota, antigamente as pessoas não poderiam dizer que não eram negras, mas ao longo da história até o momento atual elas já podem dizer como se identificam. Me interessei pelas pessoas que, mesmo não precisando se identificar como negras, assim se identificam. Todo mundo que está no livro tem a pele clara porque eu estava interessada nessas pessoas que poderiam se passar por brancas. Quis saber porque as pessoas se identificam como negras mesmo sabendo que outras pessoas não as identificam como negras. Muitas pessoas do livro são filhos de um pai negro com uma mãe branca e como nos Estados Unidos é muito difícil você ser considerado branco, é muito comum que as pessoas se identifiquem com a linhagem negra da família. Muitas pessoas também se identificam como negras por razões políticas e muitos brasileiros que eu entrevistei fazem isso por questões políticas, porque eles poderiam se passar como pardos mas, por um posicionamento político, se identificam como negros. Uma das participantes brasileiras, que se identificou como Liliane, ressaltou que o censo estatístico no Brasil sempre mostrou que a população negra representa uma parcela importante da população e que o censo também sempre foi muito importante para identificar a negritude no Brasil. No entanto, o censo tem todas aquelas opções de preto, pardo e outros. Para a Liliane era importante que se afirmasse a negritude no País e, para ela, isso é um posicionamento político para fazer com que o censo seja realmente representativo.
6- Como a Psicologia pode ajudar no empoderamento das pessoas negras?
Uma das razões pelas quais eu me afastei da Psicologia é que eu não gostaria que as pessoas se sentissem loucas ou que achassem que existe alguma coisa errada com elas. Por isso voltei os meus estudos para a sociedade, uma vez que as pessoas respondem a um sistema social. Eu penso que a Psicologia pode ajudar nessa questão atuando junto à sociedade e ao governo para que essas esferas entendam como as ações delas afetam as pessoas negras. Ao invés de falar com as pessoas negras como se elas fossem um problema, é preciso falar com as pessoas que fazem com que a negritude seja um problema, como a indústria da propaganda e a do comércio. Um exemplo são as políticas de ações afirmativas. O governo cria esse tipo de política, mas não toma iniciativas para impedir que uma pessoa branca usufrua dos direitos de pessoas negras. Talvez a Psicologia possa apoiar as pessoas mantendo contato com o Poder Público, servindo como uma espécie de termômetro social. Nos Estados Unidos, pessoas que cometem atitudes racistas podem ser processadas e ir para a prisão. Talvez no Brasil isso seja um pouco diferente por não existir lei, ou por essa lei não ser devidamente aplicada, mas no geral é bem similar. É óbvio que existe racismo nos Estados Unidos, todavia as pessoas tentam minimizar os efeitos dizendo que "não foi tão ruim assim". Aqui no Brasil a postura é mais no sentido de negar o racismo. Certa vez assistia a um documentário sobre o Brasil e ouvi uma fala de uma mulher que tinha um cargo alto no País, possivelmente uma Ministra. Perguntaram para ela como eram as relações de raça e racismo no Brasil e ela disse que as pessoas não discutiam isso aqui, que no País não tem racismo. Essa ministra afirmou que no Brasil não se fala em raça, mas sim em cor. No entanto, se falamos de raça ou de cor, estamos falando basicamente da mesma coisa, como acontece em termos de cultura ou você é africano ou não. A existência de uma designação está intimamente ligada a outra, uma vez que, em aspectos gerais você pertence a uma determinada raça por possuir uma determinada cor.
*Esta entrevista teve o apoio de Sandra Silva, assessora internacional do Festival Latinidades, que nos auxiliou com a interpretação do idioma.
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