Por Paola Luduvice*
Caras e caros colegas de profissão,
A intenção era escrever um artigo curto para o Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra as Mulheres, refletindo sobre como podemos contribuir a partir do nosso saber-fazer profissional. Mas queria diminuir distâncias enquanto nos engajamos em uma abertura radical nesse diálogo. Escrevo a vocês, portanto, em forma de carta, desapegando de tantos formalismos e com maior liberdade na escrita.
Pensar nas possibilidades de atuação da Psicologia que contribuam para esse enfrentamento atravessa-me como um convite à reflexão. A contemplar sobre nossas potencialidades, mas também sobre nossos descuidos ao longo do tempo. Afinal, não podemos exigir autorresponsabilização de autores e autoras de violência, sem ao menos olhar para o nosso caminhar e para nossa prática.
Atualmente, o que vem me inquietando é nossa contribuição para a individualização da questão nos diversos cenários. A disseminação em larga escala do termo ‘dependência emocional’ é um exemplo disso. Digo do termo, pois não temos um consenso mínimo de sua definição. A despeito disso, há uma sensação compartilhada de que a terminologia é autoexplicativa. Está aqui a rasteira dessa aplicação indevida de termos da Psicologia sem reflexão crítica e sem pensar nas consequências, por nós e por outros profissionais.
O termo se alastra como erva daninha, reproduzido em nossos relatórios, em processos judiciais de violência doméstica contra a mulher ou em notícias veiculadas pela mídia. O ponto crítico refere-se a sua utilização, geralmente, desencarnada da realidade social e dos processos de subjetivação de gênero que propiciam relações de dependência de mulheres em seus relacionamentos afetivos, e não apenas conjugais.
Dessa forma, apassivamos todas as mulheres, desconsideramos todas suas estratégias, sejam elas eficazes ou não, para lidar com a situação abusiva e de violência. Negamos qualquer agência da parte delas. E mesmo quando há uma denúncia formal, parece não ser suficiente para pensarmos as mulheres como sujeitas ativas em busca de seus direitos. Nós, detentoras e detentores de suposto saber, prescrevemos também o caminho ideal para a trajetória dessas mulheres e o comportamento correto a ser seguido ao longo do processo penal. Afinal, a construção simbólica de um ser dependente vem acompanhada da ideia de incapacidade.
Além disso, ao qualificarmos como dependentes emocionais, localizamos novamente em nós mulheres a responsabilidade por estar na situação de violência, esquecendo o contexto histórico-social em que vivemos.
Nos protegemos também... é mais fácil pensar que isso não nos passaria, nos distanciarmos desse fenômeno que acontece com um tipo específico de mulheres – “A dependente emocional”. Ao transferir a culpa para um traço pessoal, desimplicamo-nos da responsabilidade compartilhada no processo de assujeitamento de mulheres.
Socialmente temos caminhado de “mulher gosta de apanhar” para “coitada é dependente emocional, encaminha para acompanhamento com a/o psicóloga/o”. Aparecemos como a salvação de mulheres e cristalizamos o tratamento individualizado da temática.
Veja bem! Não estou aqui negando o potencial de trabalharmos na minimização dos efeitos das violências sofridas pelas mulheres; e na emancipação dos afetos, expandindo as possibilidades de investimento afetivo-emocional de mulheres para si e para outros aspectos da vida, superando as barreiras do centramento nas relações amorosas.
Entendo que a entrada em cena de um terceiro, seja órgãos de segurança e justiça seja de serviços de proteção e/ou profissionais capacitados, podem contribuir para novas negociações no casal, para minimizar as violências e abusos nas relações.
Mas os profissionais que atuam na área vão ser empáticos comigo quando digo que impotência é uma sensação mais comum do que gostaríamos de acreditar.
Aqui fica, então, o meu chamado, além de atuarmos no sintoma (psico)social, mergulhemos de cabeça nas demais esferas, multiplicando o potencial da nossa atuação: Por mais psicólogas/os atuando em políticas públicas, por mais psicólogas/os pensando em ações preventivas, por mais psicólogas/os contribuindo para a criação de legislações, por mais psicólogas/os explorando o potencial de redes comunitárias para a promoção de bem-estar e saúde mental.
O consultório não dá conta sozinho, nem dá conta de todas.
Com muita inquietação no coração,
Paola Luduvice
*Paola Luduvice (CRP 01/17756) é psicóloga jurídica, analista do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) e mestre em Psicologia Clínica e Cultura pela UnB.
#DescreviParaVocê: a imagem colorida conta com uma chamada para leitura do artigo, além da marca gráfica do CRP 01/DF e de uma fotografia da autora. Paola Luduvice é uma mulher branca, com cabelos na altura dos ombros e está de braços cruzados e em pé, vestindo uma blusa colorida e um casaco preto.