| 28/01: DIA NACIONAL DE COMBATE AO TRABALHO ESCRAVO |
Confira a entrevista com o conselheiro do CNJ, Desembargador Alexandre Teixeira
Coordenador do Fórum Nacional do Poder Judiciário para o Combate ao Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas compartilha suas experiências com o CRP 01/DF
O trabalho escravo moderno, ou análogo à escravidão, é uma grave violação dos direitos humanos, não se limitando a uma infração trabalhista. Caracteriza-se por trabalho forçado, jornadas exaustivas, servidão por dívida, condições degradantes e isolamento, frequentemente associado à privação de liberdade e a crimes como o tráfico de pessoas.
Neste dia 28 de janeiro, dia que marca o combate a todas as formas de trabalho análogo à escravidão, o Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal conversou com o desembargador do Tribunal Regional do Trabalho da 1a Região (TRT-1), Alexandre Teixeira de Freitas Bastos, que faz um panorama do cenário encontrado no DF e comenta os desafios e a importância da atuação interdisciplinar na atenção psicossocial dentro do Sistema Judiciário. Leia a íntegra da entrevista:
CRP 01/DF: Como o trabalho escravo se dá nos dias atuais? Como é o trabalho que o senhor desempenha e de que forma é possível atuar frente às vulnerabilidades sociais que expõem indivíduos a essa prática?
Alexandre Teixeira: Para entender o trabalho escravo atualmente, é importante fazer um pequeno retrospecto histórico. A CLT foi publicada pouco após abolição da escravidão em nosso país (ao menos em termos de vigência de leis e formação de cultura jurídica, o tempo foi curto). O trabalhador, que passou a ter direitos pela legislação trabalhista, era, a grosso modo, o recém-liberto. Portanto, aos olhos do empresariado, a diferença de condição entre o trabalhador, um sujeito de direito, e aquele que representa apenas mais um dos elementos da produção nem sempre é muito nítida. É claro que, quando não se consegue traçar com nitidez essa linha divisória, existe a possibilidade de se naturalizar a precariedade das relações de trabalho, de maneira que o trabalho escravo ou análogo à escravidão seja uma realidade espantosa, que chega aos dias em que vivemos. Como juiz do trabalho, a jurisdição que exerço atua especificamente no enfrentamento dessa situação.
Mas, no exercício da presidência do Fontet, estando no CNJ, esse trabalho ganha uma dimensão ainda maior, pois o Conselho tem uma função de articular os variados segmentos existentes no âmbito do poder judiciário – ou seja, as várias facetas do trabalho escravo, envolvendo não apenas o reconhecimento de uma relação de emprego precária, mas os aspectos criminais e, eventualmente, com contornos que vão afetar a vida civil das vítimas.
E não é só. Também cabe ao CNJ permitir e fomentar que os atores que integram o Poder Judiciário se articulem com outras instâncias e atores, tanto públicos quanto privados, que formam uma rede necessária ao enfrentamento desse grave problema.
Pode-se dizer que há três níveis de atuação: o operacional, o tático e o estratégico. O Fontet/CNJ atua no nível estratégico, formulando políticas para o Poder Judiciário Nacional no enfrentamento do trabalho escravo. Sem essa atuação, além de não se estimular a formação de parcerias, as capacitações não se realizariam. O Poder Judiciário não irá substituir os órgãos da Assistência Social previstos na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), como o CRAS e o CREAS, todavia, uma atuação articulada entre a Justiça e a Assistência Social diminui a vulnerabilidade das pessoas afetadas pelo trabalho escravo, que poderão fazer jus a benefícios sociais, inclusive de transferência de renda. Além disso, a política de enfrentamento ao tráfico de pessoas e de trabalho escravo tem quatro eixos: a prevenção, a persecução criminal, a proteção e as parcerias. O Fontet foca nesse último eixo, porque é mais desafiador do que os outros eixos, em razão de exigir maior capacidade de articulação.
CRP 01/DF: Na sua visão, qual seria o papel da Psicologia no acolhimento e na recuperação emocional das pessoas em situações de trabalho análogo à escravidão? Há práticas ou políticas que o senhor acredita serem especialmente eficazes nesse contexto?
Alexandre Teixeira: A meu sentir, o papel da Psicologia é muito relevante, tanto no resgate quanto naquilo que se chama de pós-resgate. A situação de precariedade da vítima indica que traumas são quase sempre ocasionados. E o alcance da atuação do Poder Judiciário tem uma esfera específica. O campo da Psicologia vai além do jurídico, cabendo a um atuar em complemento de outro saber. Esta complementariedade é uma das formas do trabalho é efetuado em rede.
Assim, o cuidado com a saúde mental é essencial no acolhimento das vítimas de trabalho escravo, porque, num primeiro momento, a vítima não se sente vítima, pelo contrário, sente que foi prejudicada. Após a conscientização, há necessidade de apoio à vítima, porque ela se encontra, muitas vezes, deslocada, sem família ou rede de apoio por perto, com sofrimento mental angustiante. Em alguns casos, o CAPS-II, para os jovens trabalhadores escravizados, e o CAPS adulto podem fornecer, junto com as unidades de saúde básica, um atendimento mais específico na saúde mental dos trabalhadores.
CRP 01/DF: O trabalho análogo à escravidão pode ter impactos psicológicos profundos, como traumas e transtornos relacionados à violência e ao abuso. Como o Fórum Fontet tem lidado com a necessidade de assistência psicológica às vítimas? Há espaço para o fortalecimento dessa atuação?
Alexandre Teixeira: O Fontet estimula que os magistrados e magistradas de primeiro grau capitaneiem uma rede de apoio à vítimas, além da assistência social (CRAS e CREAS), incluindo as UBSs e CAPS, inclusive CAPS-AD, porque, até para aumentar o vínculo de dependência, alguns empregadores podem estimular o uso de drogas ilícitas. A ocorrência de traumas é mais rara, contudo, as pessoas afetadas devem ser encaminhadas para a atenção básica de saúde mental, num primeiro momento, que será, em alguns casos, a porta de entrada para a atenção mais especializada que irá receber a vítima no CAPS. Pode parecer repetitivo, mas é essencial sublinhar a importância do trabalho em rede, pois nenhum dos atores é autônomo o suficiente para que o enfrentamento ao trabalho escravo e análogo possa ter êxito.
CRP 01/DF: Na sua experiência, quais políticas públicas têm sido mais efetivas no combate ao trabalho escravo contemporâneo? Como a Psicologia pode se inserir no aprimoramento dessas políticas, especialmente no apoio às vítimas e na conscientização social?
Alexandre Teixeira: O primeiro aspecto é o da conscientização. O trabalho escravo ou análogo à escravidão é, muitas vezes, invisível. Portanto, campanhas de conscientização, principalmente naquelas localidades em que é mais facilitada a ação do “gato”, são impressindíveis. Normalmente são espaços com maior dificuldade econômica. Por tal razão, as políticas sociais da Assistência Social, principalmente de transferência de renda, são mais efetivas, porque impedem que a pessoa se submeta a condições degradantes no ambiente de trabalho.
Não se pode desprezar, também, o grande espaço aberto à Psicologia Social, porque a situação de vulnerabilidade não é setorizada, isto é, a vítima não tem um só direito violado. Na intersetorialidade proporcionada pela Psicologia Social, é possível que a pessoa afetada pelo trabalho escravo se integre na célula social, que é a família, e em sua comunidade. Geralmente a vítima resgatada em situação de trabalho escravo está deslocada de suas referências familiares e comunitárias, gerando grande sofrimento mental. Quando não for possível a reintegração familiar ou comunitária da vítima, inclusive, a Psicologia tem papel fundamental em minorar esse sofrimento, reduzir danos.
CRP 01/DF: Dados indicam que condições de trabalho degradantes não apenas violam direitos humanos, mas também impactam diretamente a percepção de valor e autonomia das vítimas. Em sua experiência, como a Psicologia e o Poder Judiciário podem se unir para restaurar a dignidade e a autonomia dessas pessoas? Há estratégias interdisciplinares que o senhor considere promissoras ou necessárias?
Alexandre Teixeira: Em determinados ramos do Poder Judiciário, principalmente no da Violência Doméstica e da Infância e Juventude, a atuação de equipes técnicas formadas por assistentes sociais e psicólogos permitem que os magistrados e magistradas atuem de forma mais precisa. Isso ainda não ocorre em todos os outros ramos, motivo pelo qual a atuação em rede é o caminho mais eficaz para que a interdisciplinariedade possibilite restaurar a dignidade e a autonomia das pessoas afetadas. Estratégias interdisciplinares promissoras, como as itinerâncias – ações em que os magistrados e magistradas que se deslocam até o local, que geralmente não é de fácil acesso, e interagem com os equipamentos locais de saúde e assistência social –, constituem algo que gera bons frutos, indicando caminhos que já vêm sendo trilhados e devem ser ainda mais aprofundados.
As soluções são construídas e aperfeiçoadas com o fortalecimento dessas redes de enfrentamento. A Psicologia é fundamental, como mencionei, para o trabalho que certamente não se esgota no âmbito do Poder Judiciário. Aliás, a saúde mental é essencial para o bom funcionamento das sociedades, com a notável repercussão na melhora da qualidade de vida dos sujeitos nelas integrados. Portanto, o papel da Psicologia assume, a meu ver, protagonismo crescente, que deve ser reconhecido e estimulado cada vez mais mais.
Alexandre Teixeira de Freitas Bastos Cunha formou-se em Direito pela Universidade Gama Filho em 1987 e obteve o título de Doutor pela Universidade Complutense de Madri, Espanha, em 2007. Iniciou sua carreira como Juiz do Trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região em 1991 e foi promovido a Desembargador Federal do Trabalho em 2005. Foi Diretor Geral da Escola Judicial do TRT da 1ª Região de 2009 a 2013 e membro do Conselho Consultivo da ENAMAT entre 2011 e 2013. Também atuou como Gestor Regional do Comitê de Trabalho Seguro de 2019 a 2021. Participou de diversos cursos, congressos e encontros, destacando-se como palestrante e debatedor em temas como discriminação no trabalho, reforma trabalhista e negociação coletiva. Foi professor de Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho em várias instituições e é autor de várias monografias e artigos publicados em revistas jurídicas. Recebeu prêmios e medalhas de honra ao mérito por suas contribuições à cultura jurídica e ao Poder Judiciário. Atualmente, é conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e coordenador de diversos comitês, incluindo o Comitê Gestor de Justiça Restaurativa, o Comitê Nacional de Enfrentamento à Exploração do Trabalho em Condições Análogas à de Escravo e ao Tráfico de Pessoas (FONTET), o Comitê Gestor do Programa Nacional de Gestão Documental e Memória do Poder Judiciário, o Grupo de Trabalho da Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia e o Conselho Nacional do Turismo, junto ao Ministério Público.
#DescreviParaVocê: card colorido no qual aparece a marca gráfica do CRP 01/DF e uma foto do Desembargador, com chamada para leitura da entrevista em referência ao Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, celebrado em 28 de janeiro.