Em alusão ao Dia Nacional de Luta dos Povos Indígenas, o Conselho Regional de Psicologia do Distrito Federal (CRP 01/DF) conclui esta semana uma série de entrevistas concedidas por profissionais indígenas que atuam como referência na área da saúde mental, garantia de direitos e promoção da diversidade em diversas regiões do País.
Nesta entrevista, convidamos a psicóloga Priscila Góre a compartilhar suas vivências com as(os) psicólogas(os/es) e população do Distrito Federal. Priscila Góre (CRP 07/23970) é indígena psicóloga Kaingang, atua há 10 anos na Secretaria de Saúde Indígena (SESAI) Polo Base Guarita e é cofundadora do GT Guarita pela Vida, movimento de mulheres indígenas que busca o empoderamento das mulheres indígenas por meio do enfrentamento das violências. Recentemente, assumiu a vice-presidência do CRP 07/RS.
Confira:
1) Em 7 de fevereiro, celebramos o Dia Nacional de LUTA dos Povos Indígenas, palavra que acompanha os mais de 300 povos indígenas já reconhecidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no Brasil, sobretudo quando consideramos o histórico de um Estado estruturado a partir de um modelo exploração predatória do meio ambiente e desigualdade social. Na sua avaliação, qual a importância dessa data e qual a relevância de não limitar as reflexões propostas por ela somente ao dia 7 de fevereiro?
A luta de nós, povos indígenas, é diária, e a Psicologia possui um compromisso ético e político frente a pauta das populações indígenas, principalmente na amplitude do bem viver indígena, que precisa trazer para diálogo a saúde mental na perspectiva indígena. É uma data importante, assim como tantas outras que abrangem os movimentos em defesa da vida. No seu compromisso em defesa dos direitos humanos, fortalecer a luta e estar ao lado dos povos indígenas é fundamental.
2) Estamos vivendo um contexto em que conquistas de direitos importantes estão sob ameaça diante do avanço de grupos supremacistas no Brasil e no mundo. Quando falamos de povos indígenas em nosso País, estamos falando de diferentes culturas, de mais de 270 línguas distribuídas por todo o território nacional e de uma diversidade de demandas e cosmovisões que não se encaixa em um padrão de ser humano único e universal ou em um modelo de sociedade que desconsidera as singularidades das pessoas e das coletividades. Qual o lugar da sua atuação profissional nesse cenário?
Infelizmente a colonização ainda não acabou, e as violências e violações de direitos precisam ser discutidas fortemente. Diante do compromisso com os direitos humanos de todas as pessoas, no que diz respeito aos povos indígenas, a Psicologia surge para se somar na luta que perdura há mais de 525 anos. A categoria precisa estar cada vez mais sensibilizada para este cuidado. Lutar em defesa da vida é lutar também pela vida dos guardiões da terra, que somos nós povos indígenas. Discutir políticas públicas, ouvir a base e se atentar à pluriversidade é um caminho importante para a construção das Psicologias Brasileiras. A Psicologia vem ao encontro do cuidado. Cuidado este que está presente na cultura indígena, pois tradicionalmente os povos indígenas realizam o cuidado dos seus e de tudo o que está ao seu redor. É indispensável que se respeite os povos indígenas, pois existem tecnologias ancestrais de cuidado e potências que a Psicologia precisa conhecer e respeitar.
3) Um dos temas que vêm ganhando destaque no noticiário diante dos impactos das mudanças climáticas é o racismo ambiental e como diferentes grupos sociais estão mais ou menos vulneráveis a essa realidade. Como esse tema tem sido observado em seu trabalho junto a populações indígenas no Brasil, em sua região, e de que forma os desafios enfrentados pelos povos indígenas impactam a saúde mental dessas comunidades?
Nós povos indígenas possuímos uma ligação com a terra, uma conexão que nos torna um só, nosso território é extensão de quem nós somos, nós somos corpos-territórios. Nossa ancestralidade nos conecta com passado, presente e futuro. Para nós o território é sagrado e tudo o que acontece com ele nos atinge, por isso que a demarcação de terras indígenas é tão importante, pois é uma defesa do nosso lar e por estarmos na linha de frente em defesa da vida do mundo. Os não indígenas precisam entender que a terra não está à venda, ela é inegociável. Ela nos dá vida, nutre nossos corpos-territórios.
Há muito tempo, nós povos indígenas falamos sobre a preservação ambiental, uma emergência climática que o mundo, principalmente o Brasil precisa buscar ações de cuidado com a terra, por isso que nós povos indígenas precisamos ser ouvidos. Ao longo da nossa história, sofremos ataques e ameaças constantes do nosso espaço em que vivemos, e isso pode produzir uma série de sofrimentos, onde o ataque e genocídio dos povos indígenas vêm tirando a vida de pessoas indígenas, entre elas de lideranças, mulheres, jovens, crianças. Este ataque constante aos nossos direitos constitucionais de acesso à terra produz a incansável luta em defesa do direito de vivermos. Por isso, falar sobre o território, sobre a demarcação de terras indígenas também é um dos compromissos da Psicologia.
Essas discussões vêm se fortalecendo, onde já organizamos dentro do CRP/RS várias ações, como a discussão sobre o Marco Temporal, onde várias lideranças indígenas, mulheres indígenas e categoria profissional se reuniram para debater sobre o compromisso da Psicologia com os povos indígenas. Além disso, realizamos webinário e também textos para serem publicados na Revista Entre Linhas.
É uma luta constante, e o papel enquanto indígena, como psicóloga, é diário, assim como todas as demais indígenas psicólogas que realizam um trabalho extremamente importante junto ao território indígena, levando também para discussão e construção a importância do cuidado coletivo e em rede. É indispensável um trabalho intrasetorial e intersetorial, onde a pauta dos povos indígenas é compromisso de todos e não apenas de órgãos indigenistas, mas além da esfera federal, é responsabilidade também de municípios e estados. Já avançamos muito nessas discussões, mas é necessário seguir, sempre se fortalecendo na luta coletiva. Há muitos desafios, mas não podemos parar.
4) Como a sua área de atuação profissional pode ser utilizada como ferramenta para fortalecer as identidades culturais indígenas e promover o bem-estar?
O respeito à pluriversidade de existências é indispensável. A Psicologia deve fortalecer o diálogo sobre a questão étnica e racial. Já avançamos muito, mas precisamos ampliar e fortalecer ainda mais o diálogo com a categoria profissional e com a sociedade. É importante ainda que se tratando de povos indígenas, que a nossa base seja ouvida, principalmente nossas lideranças indígenas, lideranças espirituais, mulheres indígenas e todas as pessoas do território indígena, que têm muito a contribuir com a Psicologia, ou melhor, a Psicologia tem muito a aprender com os povos indígenas. Lutamos hoje por uma Psicologia antirracista e que seja comprometida com a luta pela vida, pois a Psicologia que nós queremos tem lugar para todas as pessoas.
5) Como ser uma mulher indígena influencia sua abordagem profissional? Que desafios ou preconceitos você enfrentou em sua trajetória acadêmica ou profissional, e como os superou? Há algum momento marcante em sua vivência como mulher indígena que ilustre a força e a resiliência de seu povo?
Ser indígena psicóloga permite uma maior conexão com o território. Há inúmeros desafios, principalmente o fato de sair do território. O desejo é sempre de ficar aqui, em contato com os nossos, com a mata, o rio, o ar que respiramos, que é diferente quando saímos. Considero que este foi um dos principais desafios, sair do território, por mais que fosse temporário. A vida lá fora é diferente.
Em relação a se há momentos marcantes, com certeza logo que me formei, em março de 2015 já iniciei meu trabalho dentro da SESAI (Secretaria de Saúde Indígena), no Polo Base Guarita que está localizado no município de Tenente Portela/RS e abrange a Terra Indígena Guarita e Terra Indígena Inhacorá. Os municípios de abrangência são: Tenente Portela, Redentora, Erval Seco e São Valério do Sul. Fui uma das primeiras mulheres indígenas da Região Sul a graduar no curso e atuo há quase 10 anos como responsável pela Atenção Psicossocial do Polo Base, auxiliando as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena com as demandas de Saúde Mental, fortalecendo ações de bem viver indígena.
Realizo um trabalho de matriciamento das equipes e atuação direta com a população indígena, atuando juntamente ao território, junto às mulheres indígenas, lideranças indígenas, com os Kófa (pessoas mais velhas), especialistas das medicinas indígenas e demais, para o fortalecimento das potências do território, buscando um trabalho em conjunto, com muito diálogo e articulação intrasetorial e intersetorial. Buscando dessa forma, o fortalecimento do bem viver indígena, que está ligado diretamente a saúde mental.
É indispensável um trabalho que respeite a pluriversidade cultural, respeitando e valorizando o conhecimento e ancestralidade indígena, valorizando as Medicinas Indígenas que são a base cultural. Ao longo da minha profissão, realizo um trabalho que seja sensível à cultura indígena, que tem muito a ensinar para a Psicologia. Também sou cofundadora do Movimento de Mulheres Indígenas: GT Guarita pela Vida, que busca o empoderamento de mulheres indígenas no enfrentamento das violências. Realizando junto com as demais mulheres indígenas e lideranças, a discussão sobre a importância do corpo-território, pois temos a compreensão que estamos conectadas com a terra. Nos encaminhamos para o 4º ano de trabalho coletivo, onde realizamos no território a discussão sobre a importância de políticas públicas que tragam a proteção dos nossos corpos, dentro e fora do território ancestral. Levantamos a bandeira de luta de que a violência não é cultural. Violência esta que infelizmente está presente há mais de 525 anos, que está marcada em nossa memória e em nossos corpos-territórios, mas que diariamente lutamos para a garantia dos Direitos Humanos. Lutamos pela vida.
Em 2022, diante de toda a minha trajetória em defesa dos direitos dos povos indígenas que está comigo desde que nasci, e na luta por uma Psicologia pluriversa, fui convidada por Miriam Alves, que é a atual presidenta do CRP/RS, para compor a chapa que hoje é a atual gestão desta autarquia. Foi muito marcante ter sido indicada por referências nacionais a ser a primeira indígena psicóloga conselheira do Rio Grande do Sul e estar ao lado de outras pessoas indígenas que estão como conselheiras dentro do Sistema Conselhos de Psicologia, através da Política de Ações Afirmativas. Não somos apenas números, mas atuamos num espaço de autarquia, levando para discussão sobre o bem viver dos povos indígenas, que são 305 povos em todas as regiões do País.
Desde então, estou no CRP/RS levando a pauta indígena, marcando e firmando também nossa presença quando foi criado o Núcleo Bem Viver: Psicologias Indígenas e Corpos Territórios, que fazia parte da Comissão de Relações Étnico-Raciais e que em 2024, o Núcleo se transformou em comissão, um marco extremamente necessário e indispensável na luta por uma Psicologia Pluriversa. Atualmente, estamos em 7 pessoas indígenas, estando eu como conselheira e as demais colaboradoras que atuam diretamente nas discussões.
Sigo atuando como mulher indígena, psicóloga, trabalhando diretamente na Saúde Indígena e junto a discussões em nível estadual e nacional em defesa dos direitos dos povos indígenas. Já realizei diversas palestras e rodas de conversa em diversos espaços, principalmente sobre a importância da interculturalidade dentro do Sistema Único de Saúde, espaços acadêmicos e movimentos sociais.
Sigo aqui por todas as que me antecederam, as que estão comigo e as que virão. Sei que enquanto indígena jamais estarei sozinha, carrego uma ancestralidade que pulsa em mim, os ensinamentos de vida do meu povo, a potência do cuidado. Antes mesmo de a Psicologia existir, já falávamos sobre bem viver, sobre tecnologias de cuidado que existem em nossos territórios. Hoje estamos marcando a história com nossos corpos-territórios, onde ocupamos espaços tão importantes na luta pela nossa existência enquanto pessoas indígenas. A Psicologia possui um compromisso ético e político com os povos indígenas e seguirei caminhando em consonância com a minha base, que é o território, as minhas parentas mulheres indígenas, com nossos Kófa (pessoas mais velhas) com as lideranças indígenas e com toda a potência que temos.
#DescreviParaVocê: card colorido no qual aparece uma foto da psicóloga, a marca gráfica do CRP 01/DF e uma chamada para leitura da entrevista completa.