Série: Direitos dos empregados domésticos - o que a Psicologia tem a ver com isso?
Entrevista com a psicóloga e conselheira regional do CRP DF, Márcia Maria da Silva
Após cerca de dois anos de tramitação no Congresso Nacional, foi sancionada pelo Poder Executivo no início deste mês a lei que regulamenta direitos de trabalhadores domésticos no País. O texto estende à categoria 16 direitos já assegurados aos demais trabalhadores urbanos e rurais contratados pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), como Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), hora-extra e adicional noturno, entre outras garantias. Até a aprovação do texto final, muitas discussões levantadas no âmbito dos Poderes e da própria sociedade civil ainda apontavam dificuldades para implementação das novas regras que, para os demais trabalhadores, já é uma realidade no Brasil há algumas décadas. O que de fato representa essa nova lei? Para falar sobre o tema, entrevistamos a psicóloga e conselheira regional do CRP DF, Márcia Maria da Silva.
Por que, na sua avaliação, demorou tanto para que o Brasil pudesse reconhecer as garantias trabalhistas dessa parcela da população?
A demora na aprovação desse projeto deve-se ao fato de as políticas públicas atingirem mulheres, grupos étnico-raciais e homens de forma desigual. O trabalho doméstico no Brasil é praticamente realizado por mulheres (93,6%) e, dessas, 72% são negras. Em um país onde historicamente mulheres e negros foram colocados em condição subalterna, os fatos ratificam como o Estado tem produzido e mantido essas diferenças ao longo do tempo. O trabalho doméstico no Brasil reporta ao tempo da escravidão, pois em quase quatro séculos, as mulheres negras deram sustentação aos lares patronais cuidando de filhos e famílias em meio a violência física e sexual, abandonando muitas vezes a própria prole. Produto de uma abolição inacabada, o trabalho doméstico representou a possibilidade de sustentabilidade das famílias negras. Assim, mais uma vez as mulheres negras se submeteram a jornadas análogas à escravidão cujo pagamento em geral era feito em troca de alimentação e moradia. Eram livres mas sem teto, sem lugar para deixar os filhos, sem escolas, portanto esses fatos ilustram como se consolidaram as bases de desvalorização da lida doméstica expressa pela falta de remuneração digna, ausência de cumprimento de direitos e abuso das relações de trabalho. A classe doméstica começou a conquistar direitos em 1972, quando a Lei n° 5.859 passou a garantir o direito a carteira de trabalho, férias remuneradas e vale transporte para empregados comuns e domésticos e agora atinge o apogeu com a “PEC das domésticas”, que prevê a extensão aos empregados domésticos da maioria dos direitos já previstos atualmente aos demais trabalhadores registrados com carteira assinada.
Alguns estudos feitos no período de tramitação da chamada "PEC das domésticas" analisaram reportagens e charges que traziam a temática para a agenda de debates da sociedade. Algumas dessas pesquisas apontaram relações diretas de gênero, classe e raça/etnia nas representações dos trabalhadores domésticos na grande mídia. Que olhar a Psicologia tem sobre essas relações?
A precária situação legal dos trabalhadores domésticos os tornam especialmente vulneráveis às praticas abusivas, onde estão presentes a violência física e sexual, abuso psicológico, racismo e homofobia. No entanto, o sujeito considerado membro da família não consegue apreender o quanto a relação é nociva a sua saúde, pois são relações hierárquicas de poder que estruturam a nossa sociedade desde o Brasil colônia, onde geralmente o chefe da família - homem - manda e tem que ser obedecido. Nesse aspecto, a Psicologia deve estar atenta às relações que são fontes de adoecimento, principalmente para as mulheres negras, que são a maioria do contingente desses trabalhadores e são discriminadas duplamente por serem mulheres e negras. Como cediço, as relações entre brancos e não-brancos é normativa, pejorativa e extremamente violenta, violência que nasce de um lugar de poder ocupado pela figura dos patrões. Assim, faz-se necessário mais estudos relativos ao impacto psíquico do racismo, levando em consideração o que é ser uma mulher negra no Brasil, sobrevivendo ao ataque furioso e contínuo, sutil ou brutal contra a sua própria humanidade. Estudos também devem ser aprofundados sobre o impacto do sexismo e da homofobia. O mundo dos relacionamentos é objeto de análise da Psicologia.
Na sua opinião, a sanção dessa lei já pode ser considerada uma conquista ou ainda encontramos desafios significativos na perspectiva da garantia de direitos de trabalhadores domésticos no País?
Sem dúvida é uma conquista porque a lei assegura doravante que os trabalhos domésticos sejam devidamente pagos e que sejam respeitados direitos trabalhistas. No entanto, estes mecanismos jurídicos não têm sido suficientes, por si só, para resolver todos os problemas. Por exemplo, a lei que criminaliza o racismo não tem sido suficiente para diminuir ou erradicar esta prática que é um trabalho mais amplo. Nesse sentido, cabe ressaltar que não é só por via legal que vamos mudar comportamentos que foram solidificados por meio da cultura. Ainda assim, como argumenta Segato (2003), a lei tem seu valor como dispositivo moderno com finalidade educativa, que permite combater o silenciamento que a moral tradicional impõe à exposição das violências hierárquicas cotidianas. Assim, como criminalizar a violência contra as mulheres ou a homofobia, criminalizar o racismo é participar de um movimento de transformação das subjetividades coletivas que naturalizam e legitimam moralmente estas formas de violência.