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SÉRIE "SAÚDE MENTAL NO TRABALHO": 2ª REPORTAGEM

SÉRIE "SAÚDE MENTAL NO TRABALHO": 2ª REPORTAGEM


Saúde mental no trabalho

 

Contribuições da Psicologia e o desafio brasileiro no cenário atual

Atuação do poder público e ações cabíveis contra o adoecimento no meio ambiente de trabalho

Na 2ª reportagem da série “Saúde mental no trabalho: contribuições da Psicologia e o desafio brasileiro no cenário atual”, falaremos sobre as políticas públicas e ações cabíveis para minimizar o sofrimento do trabalhador diante de quadros de adoecimento no contexto do trabalho. Abordaremos a atuação do poder público no enfrentamento à questão, desde as políticas desenvolvidas no âmbito do Ministério do Trabalho e Emprego, Ministério da Saúde e secretarias estaduais, distritais e municipais às ações promovidas pelo Ministério Público do Trabalho e pela justiça brasileira.

De exigências desproporcionais a insultos e agressões verbais. A procuradora e coordenadora Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades e Eliminação da Discriminação no Trabalho do Ministério Público do Trabalho (MPT), Valdirene Silva de Assis, explica que o assédio moral é um conjunto de práticas reiteradas que se configuram na relação de trabalho e que geram constrangimento e humilhação ao trabalhador, podendo, muitas vezes, culminar em adoecimento psíquico. “Na nossa conceituação jurídica, uma das expressões que a gente usa para caracterização do assédio, como fenômeno psicossocial, é violência psicológica, o que acaba muitas vezes levando o trabalhador ou a trabalhadora a pedir demissão ou, o que temos em vários relatos: o adoecimento”, explica. “No entanto, para a caracterização do assédio moral, nós não precisamos do adoecimento. O adoecimento é uma consequência. A caracterização do assédio é justamente esse terror psicológico, essa violência psicológica que se pratica contra trabalhadoras e trabalhadores de forma reiterada, tornando esse ambiente de trabalho insustentável, hostil pelas práticas de humilhações, constrangimentos etc.”

A procuradora observa que há situações em que o assédio é individual, ou seja, parte de algum colega de trabalho, seja o superior hierárquico ou alguém de mesma hierarquia, e há casos em que o assédio é organizacional, situação em que o empregador vai lançar mão de uma série de atos que caracterizam a prática. “Na esfera trabalhista, ainda que se trate de assédio individual, a responsabilidade é do empregador. Se o assédio está ocorrendo no ambiente de trabalho, o empregador deve fazer o combate devido porque ele é o responsável por manter o meio ambiente de trabalho saudável”, explica. “Como as pessoas ficam uma boa parte do seu dia no ambiente de trabalho, quando esse ambiente traz a característica de submetê-las a práticas abusivas, vexatórias, constrangedoras, essa infração trabalhista vai acabar redundando em adoecimento. Estamos falando de depressão, alteração da pressão arterial, quadros de angústia, ansiedade, crises de choro, insônia e, em situações mais graves, há relatos até de suicídios”, expõe a procuradora.

“Nós temos visto um aumento no número de suicídios e uma das principais razões para isso são as pressões no ambiente de trabalho, assédio moral e outras deteriorações do meio ambiente de trabalho que fazem com que as pessoas tomem atitudes tão extremas”, destaca o procurador e coordenador Nacional de Defesa do Meio Ambiente do Trabalho do MPT, Leonardo Osório Mendonça. “Hoje ainda não é a maior causa de afastamentos no trabalho no mundo todo, mas a Organização Mundial da Saúde (OMS) já estima que, a partir de 2020, a maior causa de afastamentos do trabalho em todo o mundo será por fatores relacionados à saúde mental”, alerta.

Os procuradores explicam a importância da denúncia de situações em que o profissional verifica a possibilidade de adoecimento no trabalho. “Se nada é feito, essa prática vai se perpetuando e vitimando outros trabalhadores”, ressalta a procuradora Valdirene Silva de Assis. “O caminho clássico é notificar o fato, buscando a unidade do Ministério Público do Trabalho do local do dano, sejam as procuradorias regionais do trabalho nas capitais ou as procuradorias do trabalho nos maiores municípios do nosso país”, observa o procurador. “Toda denúncia ao Ministério Público do Trabalho pode ser feita de forma anônima e o sigilo é garantido para o trabalhador. Sempre que o trabalhador identificar algum tipo de violação ao seu meio ambiente de trabalho ou a alguma outra norma de caráter trabalhista, ele pode procurar o Ministério Público do Trabalho, denunciando essa situação”, enfatiza o procurador Leonardo Osório Mendonça. “O procurador do trabalho irá avaliar se existe o interesse público para autorizar a atuação do Ministério Público e, caso exista esse interesse público, será aberta uma investigação. Nas questões relacionadas ao meio ambiente de trabalho, via de regra, existe o interesse público porque o bem que está em risco é a vida e a saúde dos trabalhadores e não interessa a quantidade de trabalhadores que estejam sendo prejudicados por aquela empresa que está violando o meio ambiente de trabalho”, explica.

Comprovada a situação, o Ministério Público busca firmar com as empresas um Termo de Ajuste de Conduta, no qual a empresa se obriga a cumprir as disposições legais e coibir as práticas abusivas. Caso a organização não tenha interesse em firmar o acordo, o MPT atua através do ajuizamento de ações civis públicas, exigindo multa em hipótese de reincidência e o pagamento de dano moral coletivo, cujo valor é revertido para o Fundo de Amparo ao Trabalhador ou para projetos que buscam compensar a sociedade pelos prejuízos sofridos com a prática do assédio moral.

“Nós temos algumas ações paradigmáticas no setor bancário e no setor de telemarketing, onde nós procuramos demonstrar ao Poder Judiciário a cobrança de metas excessivas, pressões excessivas e adoção de medidas desproporcionais que fazem com que essas empresas tenham um nível de adoecimento bem superior à média nacional”, expõe o procurador do trabalho. “Precisamos mudar a própria organização do trabalho, criar ambientes de trabalho saudáveis. Não estamos questionando a necessidade de desenvolver a produtividade, mas isso não pode ser tão nocivo, tão agressivo, ao ponto de os trabalhadores serem tão pressionados que passam a adoecer”, argumenta.

“É cada vez mais importante incentivar que as empresas contratem psicólogos do trabalho porque hoje os problemas de saúde mental são muito frequentes e tendem a aumentar. Infelizmente, nós vemos poucos avanços das empresas para prevenir o adoecimento no que se refere à saúde mental dos seus funcionários e a reforma trabalhista preocupa muito o Ministério Público do Trabalho em vários dispositivos. A própria terceirização irrestrita, por exemplo, pode ocasionar uma série de problemas relacionados à saúde no trabalho, uma vez que já verificamos que entre essas empresas existe um maior número de afastamentos relacionados a acidentes de trabalho do que nas empresas que contratam diretamente os seus funcionários”, alerta o procurador. “As perspectivas infelizmente não são boas, mas o Ministério Público está atento para fazer com que aquilo que está previsto na Constituição seja respeitado. A reforma trabalhista foi aprovada, mas ela deve ser aplicada de acordo com os princípios e direitos previstos na Constituição, que não foram flexibilizados, não foram alterados e continuam sendo o parâmetro para qualquer entendimento do que deve ser aplicado ou não no mundo do direito do trabalho”, pontua.

Para a procuradora Valdirene Silva de Assis, as ações cabíveis contra o adoecimento no meio ambiente de trabalho passam por diversas instâncias, desde o poder público até as empresas. “As organizações, seja na iniciativa privada ou no setor público, deveriam manter canais adequados para o recebimento de denúncias, protegendo a identidade das vítimas e realizando, de fato, a punição dos assediadores. Essas medidas, somadas a práticas preventivas como informar o grupo de trabalhadores e trabalhadoras sobre o que é o assédio moral, os malefícios para o ambiente de trabalho e as consequências para o assediador, são a melhor forma de enfrentar o problema. A empresas, órgãos e entidades precisam deixar claro que não toleram esse tipo de comportamento e uma mensagem bastante objetiva é criando os canais adequados para tratar esse assunto da maneira correta”, sugere.

No campo público, a fiscalização quanto às condições de saúde e segurança no meio ambiente trabalho são, no Brasil, competência do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), vinculado ao Poder Executivo Federal, em articulação com outros entes governamentais. A pasta coordena nacionalmente a inspeção dos ambientes, condições e processos de trabalho, visando à proteção e à prevenção de riscos e danos à vida e à saúde dos trabalhadores e podendo ser acionada por meio das superintendências regionais do trabalho e emprego (SRTEs). No âmbito da promoção, da vigilância e da atenção à saúde dos trabalhadores, exercem um importante papel as políticas públicas coordenadas pelo Ministério da Saúde por meio da Rede Nacional de Atenção Integral à Saúde do Trabalhador (RENAST) e articuladas às demais redes do Sistema Único de Saúde (SUS), sobretudo por meio das secretarias estaduais, distritais e municipais de saúde e seus Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (CERESTs).

O psicólogo e perito em saúde mental e trabalho, Bruno Chapadeiro, explica que outra esfera que recebe salutares contribuições de profissionais de Psicologia é a justiça do trabalho. Pesquisador na área, em sua tese de doutorado Bruno estudou o panorama atual das perícias em trabalho-saúde. “O que mais ouvi dos psicólogos e das psicólogas que entrevistei foram queixas de possíveis impugnações de seus laudos por parte dos médicos assistentes das partes envolvidas na ação, sendo por vezes acatadas pelos magistrados, alegando que a perícia se trata de um ato médico, não cabendo portanto ao profissional da Psicologia realizá-la, fato este que é uma inverdade, tal como tutela o art. 156 do Código de Processo Civil e o subsequente art. 10 da Resolução 233/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)”, observa. “Outras dificuldades enfrentadas pelo profissional da Psicologia dão-se quanto ao tempo exíguo de execução da perícia e confecção do laudo pericial, a demora em recebimento dos honorários periciais (somente ao término da lide), a inexistência de ofertas de cursos de aperfeiçoamento na área por parte da Escola Judicial dos Tribunais Regionais do Trabalho (TRTs) e o desconhecimento do resultado do laudo pericial, ou seja, não se sabe o fim que se tem o trabalho que se destina à justiça trabalhista”, expõe o psicólogo.

Bruno cita recursos disponíveis que instruem o profissional a empreender avaliações biopsicossociais que evidenciem o nexo causal entre o adoecimento e o trabalho, como o “Manual de Doenças Relacionadas ao Trabalho” do Ministério da Saúde, os Relatórios de Atendimento ao Acidentado do Trabalho (RAAT), a Análise Ergonômica do Trabalho (AET), História Vital do Trabalho (HVT), dentre outros baseados na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) da Organização Mundial da Saúde (OMS). Ele ressalta que promover saúde no contexto do trabalho envolve pensar todas as possibilidades de maneira integrada, desde a prevenção ao tratamento do trabalhador adoecido. “Há a necessidade de compreender a saúde-doença como um processo social. As populações adoecem de forma coletiva, ou seja, se este ou aquele trabalhador ou trabalhadora adoece de enfermidade em nada relacionada com o processo de trabalho em que está inserido, este deve ser compreendido como exceção frente à coletividade. As pessoas não adoecem porque são fracas ou porque não aguentaram as exigências da empresa, mas sim porque existem limites humanos e esses limites não podem ser desconsiderados sem que haja desdobramentos mais à frente. Olhar para essa questão de forma individual tende a levar a tratamentos medicamentosos que, afinal, servem apenas para que a pessoa tenha condições de atender às exigências de desempenho no seu trabalho, ainda que por tempo limitado. Encarar a questão do adoecimento como um problema coletivo é um primeiro passo para que se possa propor ações preventivas e assistenciais”, defende.

“Os ditos transtornos mentais e do comportamento são hoje a terceira maior causa de afastamentos do trabalho no Brasil. No ano de 2016, de acordo com o Anuário Estatístico da Previdência Social de 2016 (AEPS/2016), dos 178.613 benefícios por incapacidade por transtornos mentais e comportamentais concedidos pelo INSS, somente 10.376 foram do tipo “acidentários”, ou seja, aqueles em que a relação com o trabalho foi reconhecida.Tais dados, todavia, não representam fidedignamente a realidade da saúde no trabalho em nosso país. Isto ocorre em razão da dificuldade dos profissionais da saúde e da previdência social em evidenciarem o nexo causal entre trabalho e adoecimento, bem como, das dificuldades de registro, acentuado pelas subnotificações em razão da escassez de dados diretos relativos às condições de trabalho e saúde da população. A subnotificação é um problema crônico tanto no que tange à cobertura quanto à qualidade dos registros nos sistemas de informação em saúde”, adverte Chapadeiro. “Se as organizações adotassem práticas sérias de notificação dos dados epidemio-estatísticos dos adoecimentos mentais aos órgãos públicos de atenção e cuidado à saúde do trabalhador, poderiam ser pensadas não somente práticas integrativas no sentido da “gestão do afastamento”, com vistas à reabilitação e reinserção profissional do trabalhador afastado, como também ações preventivas objetivando transformações na organização do trabalho e suas condições psicossociais na direção das cargas que levam ao desgaste mental”, completa.

“Com a famigerada reforma trabalhista, vejo um cenário temeroso ao campo da saúde do trabalhador no Brasil. As alterações na CLT promovidas pela referida ‘reforma’ impõem efeitos nefastos em diferentes aspectos: desconstrução de direitos; desestruturação do mercado de trabalho; fragilização dos sindicatos; descentralização da definição das regras que regem a relação de emprego e o estímulo à negociação no local de trabalho; fragilização das instituições públicas; ampliação da vulnerabilidade; comprometimento das finanças públicas e das fontes de financiamento da seguridade social; desestruturação do tecido social; e deterioração das condições de vida e de trabalho com impactos negativos sobre a saúde dos trabalhadores, devido ao aumento da imprevisibilidade e da incerteza”, avalia o pesquisador. “Assim, além da regulamentação não impedir a precarização, uma vez que não tem o poder de evitar ou mesmo minorar as dificuldades enfrentadas pelos trabalhadores e trabalhadoras no mercado de trabalho, quanto a tutela da proteção à saúde no trabalho, a reforma imputou a estes também a responsabilidade por pagamentos como perícias e honorários de sucumbência (indenização para cobrir os custos da parte vencedora com advogados). Logo, os desafios que se apresentam hoje ao campo da saúde do trabalhador caminham na direção da manutenção e garantia dos direitos sociais já existentes conquistados historicamente pela classe trabalhadora.”

Acesse a primeira reportagem da série “Saúde mental no trabalho: contribuições da Psicologia e o desafio brasileiro no cenário atual”

O trabalhador no século XXI: da agilidade e da polivalência à flexibilização nas relações profissionais



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